sexta-feira, 30 de setembro de 2016

Onde foi que erramos? Onde nos perdemos? O que será da nova geração?


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Charge do João (Arquivo Google)
Ofelia Alvarenga
Não quero mais escrever nada. Ficar no lero-lero que nada constrói, nada conserta. E então faço o quê? Chutar pedrinhas na rua já não dá, é tarde pra isso, vou é cair, escorregar, levar um tombo. Saudade, Deus meu, de quando dava seis horas da tarde e logo após essa hora da ave-maria, que alguém no rádio rezava (Júlio Louzada?) com grande audiência, e eu podia ouvir Jerônimo, o Herói do Sertão.
O rádio era muito acompanhante e os programas, mais ingênuos, de riso quase bobo.
Muita saudade do meu pai, da minha mãe que ouvia as novelas do Cashmere Bouquet andando de um lado pro outro. Ela não sentava, acho que se afligia, não sei bem.
HAVIA PAZ – Éramos uma família em paz. Lá fora também havia paz. Onde foi que erramos? Onde nos perdemos? O que será da nova geração que vem por aí? Que tropeços ela precisará enfrentar, lutar para ultrapassar?
Eu era feliz sem computador, sem celular. A TV começou a distrair a família do aconchego, dos causos que ouvíamos em comunhão com o passado paterno. Éramos um grupo. Éramos uma família.
Minha mãe fazia questão da ‘hora da mesa’, quando não se podia falar qualquer coisa sem ouvir ‘ó , é hora da mesa’.
Quero meu passado de volta, a paz que ele me trazia e hoje não encontro em nenhuma modernidade.
COISAS QUE SE PERDERAM – Quero de volta o seo Lucas, o ‘expressinho’ da injeção em seringas de vidro, que vinha em casa e ainda aplicava o remédio na bunda.
Quero de volta os armazéns do seo Carlos, do seo Bastos, na esquina, onde Aurélio, irmão da Quina, tirava as beiradas do bacalhau cru. Onde eu via vizinhos que faziam compras no caderno para acertar no pagamento.
Quero de volta dona Amelinha e a filha dela, Tereza com Z, professoras que davam aula de reforço na grande varanda da casa, em volta de uma mesa comprida com bancos inteiriços. E eu quis porque quis, mesmo sem precisar, fazer como outras meninas faziam: comparecer a essas aulas.
Minha mãe sorriu da minha vontade. E por um período lá estava eu em volta da grande mesa.
“GRANDE CARTAZ” – Lembro de uma coisa que errei. Dona Amelinha me pediu para fazer uma frase com a palavra cartaz. Errei porque escrevi: “Sonia tem um grande cartaz”. Era sobrinha da dona Sílvia e seo Olavo, uma menina bonita de olhos verdes e muito espevitada pra época.
Esse seo Olavo foi o mesmo vizinho que me olhou com os olhos cheios d’água ao me ver inteira na delegacia, após eu ligar pra casa e avisar minha mãe que o ônibus havia batido no carro do meu pai quando eu voltava da escola em que trabalhava.
Quero minha vida de volta, a paz daqueles dias em família, o sossego nas ruas.
Devolvo tudo: o computador, o smartphone, a TV de led de não sei quantas polegadas, os cartões de banco que facilitam minha vida em não sei quantas agências no mesmo bairro.
TUDO DE VOLTA – Quero que confiram minha assinatura no livro de capa preta do Banco Mineiro da Produção, onde meu pai tinha conta. Quero de volta o bonde que me levava à escola, ainda que meu pai usasse o carro.
Quero as empregadas amigas que atravessaram gerações em perfeita comunhão conosco. Como a Ana, babá do meu avô ‘nhô’ Chico; Samaria e o filho Joaquim, que subiu na mangueira pra pegar meu irmão lá em cima porque ele não sabia descer; quero Geralda, filha da Samaria, quero a Margarida, que se casou com o Fernando, que pintava a nossa casa. Maria Pretinha ainda está com Tia Zilda e as filhas, com direito a tudo: do plano de saúde ao amor incondicional da família que ajudou a criar e que é dela também.
E que bem lá atrás tomava conta de mim no quarto do vovô e vovó e me perguntava quem eu preferia: a Marlene ou Emilinha?
Pra onde foi tudo isso? Pra onde foi essa felicidade que não volta mais? Não está nos cinemas, não está nos teatros nem nas ruas e em nenhuma viagem. Está no passado. E o passado passou. Envelheceu comigo.
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