Biaggio Talento
A TARDEComo se explica o ato do executivo carioca Nabor Oliveira, que matou a mulher, dois filhos e suicidou-se?
Para explicar sem conhecer o personagem que fez isso é difícil. Tenho sempre o cuidado de não fazer a leitura sem conhecer a pessoa, porque, na psicanálise, temos um protocolo que acho importante. O resultado final de um suicídio é sempre o mesmo. É um cadáver, que se vai dar um jeito que foi possível. Agora, a história de cada um que se suicida tem singularidades que a gente não pode explicar o que acontece. Quando ocorrem atos de tentativas de suicídio com fracasso, podemos acompanhar um pouco, quando aquele personagem procura o analista. Já tive situações desse tipo, de pessoas que saíram do hospital devido a uma tentativa de suicídio e vieram direto para fazer uma entrevista e continuar a análise.
E o que se descobriu?
Há sempre uma história importante naquilo. É uma questão delicada, porque há várias formas de ver isso. O ponto de vista médico-psiquiátrico, o que significa tratar o suicídio como resultado de uma doença. Às vezes, uma melancolia, uma depressão, uma psicose, o que seja. Há um aspecto filosófico, talvez, que trate o suicídio como uma questão social. E, às vezes, isso tem uma implicação importante porque, quando alguém que comete o suicídio entra em uma situação da mídia, pode esperar que outras situações parecidas com aquela vão ocorrer.
É um gatilho.
Exatamente. Na época que eu trabalhava em hospital psiquiátrico, isso era uma coisa absolutamente previsível. Quando ocorria um caso não só de suicídio, mas de violência lá dentro, era preciso ficar atento porque outro certamente iria acontecer. Para nós da psicanálise, tem uma sutileza, porque é preciso analisar caso a caso como sendo uma situação privada, particular. Pois o resultado final desse executivo que se suicidou é sempre o mesmo, mas a história é diferente, a razão para isso é diferente.
Elas podem ser econômicas, amorosas…
Isso. Nós vivemos dentro de uma estrutura que não é só o social. Para a psicanálise, importa muito a linguagem. Ela se organiza em torno de algumas situações que são fundamentais. Por exemplo, uma que tem a ver com o que vou chamar do "imaginário". Não é só a imaginação. O imaginário está relacionado com o corpo, com o eu, com o amor, com o ódio, com a ignorância e com as perdas que vão acontecendo na vida de cada um. Tem uma dimensão simbólica, que faz parte disso também, que corresponde a essa concepção do desejo. Mas é um desejo sempre inconsciente, não é desejar tirar na Mega Sena ou que isso ou aquilo aconteça. É uma condição intransitiva. Se deseja, mas não se sabe o que se deseja porque o objeto que causa o desejo não é nunca visível.
Ele aflora de repente…
Exatamente. No simbólico, ainda, você tem presente todas as ficções que envolvem a história de cada um. As ficções familiares, os elementos da cultura, da religião, tudo isso que vem para compor esse envelope que estou chamando de imaginário, simbólico. E tem um que é real, o mais complexo de todos porque nos impulsiona a repetir coisas que fazem com que o corpo sofra, o pensamento sofra e a gente não possa evitar. Essa parte do real é mais complicada, pois, na psicanálise, é esse real que conta muito, embora o simbólico e o imaginário tenham o mesmo valor, mas, do real, você não tem o controle. Então, no ato do suicida, esse real tem uma importância muito grande com uma condição que eu chamo assim, "gozar da vida e gozar da morte".
O suicida procura o desconhecido com a morte?
Se é um sujeito que tem uma crença religiosa, espírita ou o que seja, ele pode acreditar que, matando-se, vai ter o conhecimento sobre isso. Não é como a psicanálise interpreta e olha para essa coisa. Nós não vamos buscar, depois da morte, o saber sobre ela. Agora, nós temos uma referência de que, muitas vezes, o sujeito, antes do suicídio, constrói um tipo de saber que produz nele um gozo que, às vezes, vale a pena a morte para ele se eternizar, por exemplo. Vale a pena a morte para fazer um ataque ao outro que, muitas vezes, ele não sabe quem é. Porque, para cada um se constituir, nós vamos fazer identificações a outros que circulam na nossa existência desde pequeno. E, muitas vezes, nessas relações, quando há uma ruptura de um ideal estabelecido, como por exemplo, na relação de um casal, na relação fraterna, de pai com filho, cada um constrói uma imagem idealizada. O que acontece é que pequenos detalhes rompem com a idealização dessa imagem. O que era uma coisa amorosa, até então, transforma-se em um ódio. Às vezes, em um ódio insuportável. E ocorre que alguns suicídios vêm por conta disso. É uma forma, às vezes, de você cometer um homicídio em você. Você ataca alguém, em você, por meio desse gesto violento de uma passagem ao ato, como nós chamamos.
O senhor lembra existir dois tipos de morte. Quais são elas?
Uma, de que todo humano, quando nasce, recebe um passaporte que vai morrer um dia. Mas a morte que vem com o suicídio não é dessa mesma natureza. É uma outra coisa que se constrói na existência do sujeito em torno desse enlaçamento que falei. Dos valores que tem o corpo e o pensamento, dos valores que tem a historicidade de cada um e dessa substância que faz gozar e que atrai o sujeito a se movimentar de uma situação que vai do mal ao pior.
Que o faz antecipar a morte...
Exato. Antecipa, embora, muitas vezes, a antecipação da morte biológica é uma tentativa de criar uma eternidade na vida, a conseguir um lugar na história de uma maneira heroica, talvez.
É possível algum tipo de prevenção ao suicídio? A psicanálise poderia de alguma forma?
Não digo prevenção. Porque, quando o sujeito constrói o cenário mental, um texto, e que ele toma a decisão do suicídio, acho que quem acredita em Deus, até Deus ajuda a que ele faça um ato bem realizado, não fracasse. Agora, quando eu comento do ponto de vista da psicanálise a questão do suicídio para que alguém ocupe a posição de objeto, promova esse ato, há um fracasso simbólico importante. Há um encurtamento simbólico importante. Então, o que a psicanálise pode fazer em situações como essas é o contrário do que, habitualmente, todo mundo diz. Se alguém fala para você, "olha, estou pensando em me matar", a primeira coisa que 99,99% vão falar é, "não pense nisso, é contra a Igreja, contra sua família, contra você". Nós fazemos o contrário. Se alguém vem e diz "estou pensando em me matar" dizemos: me fale disso.
É comum os psicanalistas serem procurados por pessoas que pensam em se matar?
É, sim. Muita gente fala nisso. Às vezes, eles são prudentes em não usar a palavra suicídio. Mas falam coisas parecidas. "Estou querendo que minha vida acabe" ou "eu queria tomar um remédio para dormir 200 anos". Tudo bem que é uma metáfora. Se você toma um remédio para dormir 200 anos, depois pode acordar. Mas, a extensão disso é para não falar sobre o suicídio porque, embora na cultura, na história, esse ato tenha sofrido uma mudança importante. Sim, porque houve momentos na nossa história em que o suicídio era permitido.
Na Roma Antiga, suicídio era uma morte nobre, honrada.
Exatamente. Há situações em que você era quase como convocado por uma obrigação de se matar. Os escravos, quando seu senhor morria, eram convidados a se matar. Em um período determinado, as mulheres quando ficavam viúvas, também. O mesmo para os velhos. Com a religião, isso mudou, porque Deus começou a ficar responsável pela vida e pela morte. E a Igreja e Deus penalizavam a quem se matava. Com a modernidade, talvez com a divulgação de outras religiões, o estado ficou um pouco encarregado disso. Então, tem a ordem médica que interfere: se alguém diz que vai se matar, ele pode ser internado, tem que tomar medicação, o diagnóstico de uma doença grave, de depressão, que seja. Agora, nós, quando trabalhamos com a questão do suicídio, condição mais importante é convidar a pessoa a falar disso. E com muita prudência e tolerância do lado do analista para não tomar uma posição que a cultura faz. Não se diz, "olhe, não pense nisso". Porque, se você diz isso para o analisante, isso fica como uma ordem.
E não surte efeito.
Às vezes, têm acontecido situações que eu já soube, já vi, do sujeito que sai do consultório e joga-se pela janela. Então, previsão a psicanálise não faz. Agora, convidamos o analisante, com prudência, a falar disso. Às vezes, solicitamos que ele venha duas, três vezes por semana, se não pode pagar, isso fica para outro momento, mas é importante que ele fale. Há um ensino de Lacan em que ele diz que a passagem-ato mais bem realizado é o suicídio. E, de uma determinada maneira: quando você se deixa cair de algum lugar, para funcionar como objeto. Ele precisa falar para comentar qual é a construção que ele trás naquele momento em que passa a ter um desprezo pela vida e um amor à morte. Tenho sempre insistido que não é um ato desesperado. A cena pode ser desesperada, o resultado pode ser desesperado, agora é diferente quando você acompanha a história desse personagem em uma situação privada à da análise, pois tem toda uma construção ali. É toda uma montagem onde você vai tendo um progressivo encurtamento do simbólico, uma diminuição da possibilidade de fala, para ir tomando uma dimensão importante o fracasso, o ódio, o amor à morte. E essa repetição que nós somos conduzidos a isso desde cedo pela linguagem. Se a linguagem nos homeniza, se a linguagem nos coloca como importantes na cultura, ela também nos adoece. Nos contamina, pois, a partir daí, nós não somos seres naturais, instintivos, o humano não é um ser instintivo. Somos seres de linguagem e de sexo. Mas o sexo aqui não é do genital, é a aproximação dessa condição do sexo com a satisfação, com o gozo que não é o prazer, é o sofrimento. Antes de você nascer, já existe uma rede à sua espera. Quando você aparece, isso o aspira, incorpora-o e, aí, começa o peso da sua existência. Faço uma expressão em oposição à Insustentável Leveza do Ser: suportamos um peso absolutamente absurdo que começa com o nome próprio que recebemos. Depois, o que se espera de cada um, o que os pais projetam para nós. Porque você começa a querer fazer as coisas para o outro e vai abrindo mão de suas vontades. Isso tem consequências no momento que a vida perde o valor, como no caso do executivo que se matou.
A psicanálise cura o suicida ou leva a pessoa a entender a situação?
Não tiramos a ideia do suicídio do pensamento de ninguém, pois já está aí desde que nasce. O que é difícil de suportar é que, às vezes, há crianças que se suicidam também. Há casos em que se pode pensar que é um acidente, mas não é. Foi por meio de um acidente, mas foi um acidente arrumado. Se alguém coloca que a vida é insuportável, que só pensa em morrer, eu diria que a psicanálise é uma prática, um ofício que auxilia muito o sujeito a fazer uma leitura diferente da vida naquele momento. Não diria nunca a um analisante, "não faça isso que não é bom", mas, pelo contrário, o importante é convidá-lo a falar sobre isso. É doloroso, arriscado, é sofrido, mas é a solução possível porque à medida que ele vai podendo falar dessa construção que ele fez, pode encontrar uma leitura diferente, pode ir encontrando outras perspectivas que não esse amor à morte, que é uma coisa que se traz desde sempre. Uso uma expressão trazida por Lacan de que, quando somos colocados na linguagem, pagamos isso como se fosse o pecado original. E carregamos tendo que suportar um pecado que não tem deus que tire. Agora, temos que nos defender disso. Quando mais cedo, pior. A criança, quando é pequena, não fala ainda, a tentativa que ela faz para se defender é por meio de manifestações somáticas, fazendo sintoma, que é proteção. Às vezes, uma doença pode ser uma condição que minimize a decisão do ato do suicídio, porque essa intensidade do real, a situação de gozo, quando faz um sintoma, um sofrimento corporal, no pensamento, você minimiza isso e vai encontrando possibilidades de ir retardando esse projeto. A psicanálise o ajuda convidando a que você faça leituras diferentes.
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