Artigo do professor João Carlos Espada, publicado hoje no Observador, analisa a autoritária "esquerda pós-moderna", que domina os campi norte-americanos, e as transformações sofridas pela direita:
Inicio hoje, nesta primeira
segunda-feira de Agosto e previsivelmente nas próximas quatro, uma breve
série dedicada a livros para férias. Receio que todos os livros que vou
mencionar tenham alguma relação, directa ou indirecta, com a grave
perturbação cultural e política que o mundo atravessa. Receio também que
uma boa parte dessa perturbação tenha alguma relação, directa ou
indirecta, com o declínio da auto-confiança e da memória do Ocidente.
Começo por The Closing of the Liberal Mind: How groupthink and intolerance define the left (New
York: Encounter Books, 2016). Trata-se de um belo livro de Kim R.
Holmes, “Distinguished Fellow” e antigo vice-presidente da Heritage
Foundation, em Washington — uma das Fundações norte-americanas mais
directamente associadas aos saudosos Ronald Reagan e Margaret Thatcher.
O tema central do livro é a emergência de um novo tipo de esquerda na
América, a que o autor chama — quanto a mim, muito apropriadamente —
“esquerda pós-moderna”. Esta “nova esquerda” está patente nas
entusiásticas hostes de jovens com educação universitária (sempre sem
gravata e preferencialmente de T-shirt, jeans, ténis ou chinelos) que
aclamaram (e continuam a aclamar) o ex-candidato Bernie Sanders. São
eles que dominam hoje os campus universitários norte-americanos (e
britânicos, para não vir mais perto).
Exigem censura sobre todas as opiniões que consideram politicamente
incorrectas. Atacam a civilização ocidental, que acusam de racista,
capitalista, machista e destruidora do ambiente. Denunciam as chamadas
“elites”, em que incluem os empresários, os políticos eleitos (mas não
os “militantes”), e em geral todas as instituições: militares,
religiosas, universitárias, judiciais ou outras.
Da esquerda clássica, sobretudo da esquerda colectivista clássica,
esta nova esquerda pós-moderna reteve as exigências de sempre mais
controlo estatal sobre a economia e a sociedade. O Estado não deve
obedecer apenas a regras gerais, o que é denunciado como “burguês”. Deve
ter propósitos específicos: a obtenção da igualdade de resultados
económicos e a uniformização dos comportamentos designados como
“progressistas”.
Os comportamentos progressistas são os que rompem com o passado ou a
tradição. São os que proclamam a total “libertação” do indivíduo
relativamente a todas as limitações morais, culturais e institucionais
sobre o capricho da vontade sem entrave. O Estado deve impor essa
“libertação” a todos os que não concordam com ela: querem o aborto
gratuito a pedido, o chamado “casamento” gay, e até a mudança de sexo
gratuita e a pedido. (Há agora também uma curiosa discussão sobre casas
de banho mistas, que receio não ter seguido em detalhe). Recusam o mais
elementar direito “burguês” de objecção de consciência — quer por parte
de indivíduos, quer por parte de instituições, sobretudo se forem de
inspiração judaico-cristã.
Kim Holmes descreve exemplarmente todos estas crenças da nova
esquerda pós-moderna, bem como o fanatismo com que elas são defendidas.
Mas faz mais do que isso. Numa elegante investigação sobre história das
ideias políticas, tenta descobrir as suas contraditórias origens
intelectuais. E detecta uma curiosa e improvável mistura entre a
esquerda radical e a direita radical.
Do lado da esquerda radical, Kim Holmes encontra o fanatismo da
igualdade, em regra associado ao ateísmo. Detecta as suas origens em
Karl Marx e, antes dele, naquilo que designa como ala radical do
Iluminismo — onde inclui Espinoza, Rousseau e Diderot. E contrasta essa
ala radical com o Iluminismo moderado e até conservador de John Locke,
Adam Smith, Edmund Burke e, no caso americano, sobretudo James Madison e
John Adams.
Do lado da direita radical, Kim Holmes encontra um outro fanatismo,
que caracteriza como pagão e anarquista. Detecta as suas origens no
contra-Iluminismo radical do irracionalismo pagão de Nietzsche e
Heidegger, retomado no final do século XX pelo pós-modernismo anarquista
de Derrida, Lyotard e Foucault.
Kim Holmes assume-se como conservador americano — aquilo que na
Europa seria talvez designado por uma direita liberal com forte
inspiração judaico-cristã. Tem portanto grandes clivagens relativamente à
tradição da esquerda americana — a que os conservadores americanos
chamam tradição liberal (e que, na Europa, corresponde em parte à
esquerda social-democrata ou socialista democrática, isto é, não
comunista).
É por isso particularmente reveladora uma das teses centrais do
conservador Holmes: a de que a nova esquerda pós-moderna representa uma
grave ruptura com a esquerda liberal (ou social-democrata, em linguagem
europeia) tradicional. Holmes recorda que conservadores e liberais
tradicionais (direita e esquerda moderadas, em linguagem europeia)
sempre divergiram saudavelmente sobre um chão comum.
Direita e esquerda moderadas acreditavam em algum sentido de dever
superior aos caprichos de cada um (embora discordassem sobre as origens e
os contornos exactos dos deveres); acreditavam ambas na virtude da
tolerância, acompanhada da fé na existência de padrões objectivos de
Bem, de Verdade e de Beleza — que podiam ser gradualmente descobertos e
aperfeiçoados através do diálogo racional entre pontos de vista rivais;
acreditavam ambas nas raízes ocidentais da liberdade ordeira; e ambas
acreditavam nas raízes plurais do Ocidente em Atenas, Roma e Jerusalém
(embora discordassem sobre o relevo do contributo de cada uma) .
Sobre esse chão comum, recorda Holmes, cresceu a moderna experiência
liberal e democrática, reformista e não revolucionária, do Ocidente. Sem
esse chão comum, alerta ele, a democracia liberal estará em risco.
Trata-se de um sério alerta — que deve ser levado a sério, quer pela
esquerda quer pela direita moderadas.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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