Do blog do Percival Puggina, colunista da Zero Hora e batalhador das liberdades, sobre os privilégios que envergonham os cidadãos honestos:
Foi o
ministro Marco Aurélio Mello quem conferiu ao Supremo o atributo de
última trincheira da cidadania. Ora, cidadania é a condição do cidadão
que desfruta do direito de participar da vida política nacional. Ao
ouvir o ministro, vislumbrei, então, esse cidadão ao qual ele se
referia. No fragor da batalha contra a corrupção, sujo de terra e
fuligem, levava ele à mão um farrapo verde e amarelo. Vi-o arrastando-se
pelo chão, noite adentro, até resvalar para o interior da trincheira
onde onze homens e suas sentenças o acolheriam no abraço cálido da
Justiça. Foi o que a imaginação me proporcionou, mas nem eu acreditei em
tal delírio.
Bem ao
contrário, o que a realidade mais tem trazido ao conhecimento dos
cidadãos brasileiros é um STF convertido em centro das expectativas dos
mais destacados membros na hierarquia da corrupção. É lá e em nenhum
outro lugar que todos os investigados desejam estacionar seus processos.
É ali que os poderosos suplicam. Foi ali que Paulo Bernardo retomou a
liberdade. Ali sumiu do mundo dos fatos o crime de obstrução da justiça
tentado por Dilma e revelado naquela infame conversa telefônica com
Lula. Oito minutos de gravação, disponibilizados no YouTube e já ouvidos
por algo como três milhões de cidadãos, simplesmente deixaram de
existir. Ali, segundo o site stf.jusbrasil.com.br, trafegam 275
inquéritos e 102 ações penais contra autoridades. É bem provável que
muitos desses processos tenham nascido nas investigações e delações
ocorridas no âmbito da Lava Jato, onde cerca de 70 "plebeus" já foram
condenados. Quantas outras investigações dessa mesma operação, porém,
bateram na trave do foro especial por prerrogativa de função e foram
desviadas para as espaçosas gavetas do STF, onde o prazo médio de
aceitação de uma denúncia é de 617 dias? Por enquanto, o placar mostra
70 x 0. E não é o zero, mas são os 70 que traziam desconforto ao
ministro Marco Aurélio quando falou em "justiça de cambulhada".
Centenas
de parlamentares e autoridades encrencados no STF contam com as regalias
do sigilo, com a prolongada ocultação de seus crimes, com o faustoso
usufruto dos bens mal havidos e com a sonhada regalia da prescrição. O
ministro Roberto Barroso afirmou, há poucos dias, que foro privilegiado é
uma herança aristocrática. E tem razão. Privilégios da nobreza
acompanham o direito vigente no Brasil pelo menos desde as Ordenações
Manuelinas (1521). Aqui, o cidadão comum sempre soube o seu lugar e
sempre reconheceu a existência de uma cidadania superior à sua, chapa
branca, de cujas regalias ele, cidadão comum, é detentor do direito de
pagar a conta.
É tão
benevolente o foro especial por prerrogativa de função, que ganhou, na
linguagem plebeia, o nome daquilo que de fato é: foro privilegiado.
Talvez o leitor esteja ponderando, coberto de razão, que a extinção
dessa iniquidade seja uma prerrogativa do Congresso Nacional, que jamais
o eliminará ou moderará, por motivos óbvios. Mas não é bem assim. O STF
já tem legislado tanto contra o próprio texto constitucional!
Basta-lhe, para isso, apontar inércia do parlamento ou contradições
entre o texto da Carta de 1988 e determinado princípio constitucional.
Nada o impede, então, de acabar com o foro privilegiado pelo mesmo
caminho, invocando, por exemplo, o princípio constitucional da
Igualdade. De que vale o Art. 5º proclamar que todos são iguais perante a
lei se a uns é reservado o direito de ter seus crimes encobertos por
delongas e pelo véu do sigilo, além da possibilidade de receber o
impagável benefício da prescrição? A nada serve o Supremo tecer críticas
ao foro privilegiado e permanecer servindo à impunidade tanto quanto o
Congresso Nacional.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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