Os livros editados com material recolhido por catadores ganham espaço no Brasil
por Rodrigo Casarin
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publicado CARTA CAPITAL
Debaixo dos viadutos, entre uma rua
e outra, acumulam-se pilhas e pilhas de lixo. Os sacolões azuis e
pretos se misturam a carcaças de computadores, empilhadeiras, um enorme
extintor de incêndio, carros e carroças vazias, prontas para serem
puxadas. Ao olhar sobre os restos, um pedaço da pintura nas cores do
arco-íris que circunda uma enorme igreja. Do outro lado, uma pilastra
onde se lê “Orgulho de ser catador”. Em uma das seis portas da casinha
de canto, comprida, toda grafitada, um espaço colorido, cheio de tintas,
papéis, papelões. Na bancada, Lúcia e Maria conversam sobre problemas
rotineiros.
As duas estão ali para falar principalmente de trabalho.
Lúcia é Lúcia Rosa, administradora da Dulcineia Catadora, editora
especializada em fazer livros com capa de papelões recolhidos pelos
catadores. Depois de passar por outras cooperativas, há três anos produz
na Cooper Glicério, presidida justamente por Maria Dias da Costa.
Entre os mais de cem títulos publicados pela Dulcineia,
estão novos escritores e nomes de destaque no cenário literário
nacional, como Andréa Del Fuego e Joca Reiners Terron. Cada livro,
normalmente com 32 páginas, tem o miolo impresso em uma gráfica rápida
e, na cooperativa, recebe uma capa única, estilizada, pintada à mão. As
tiragens costumam não passar de algumas dezenas de exemplares, ainda que
reedições se sucedam. O preço de capa varia de 10 a 15 reais. Do valor,
6 reais de cada exemplar produzido, não necessariamente vendido, são
repassados às catadoras artistas.
O projeto surgiu na
Bienal de Arte de São Paulo, em 2006, quando Lúcia Rosa deu suporte à
Eloisa Cartonera, editora argentina pioneira nesse formato de
publicação. O modelo, que visa garantir o acesso universal aos livros e
ser uma alternativa ao mercado editorial convencional, fez sucesso e
espalhou-se pelo mundo. Hoje há cerca de 200 editoras que seguem o
formato em países como Bolívia, Chile, México, Espanha e França. Depois
da Bienal, Lúcia Rosa resolveu aproveitar o que aprendera com os
argentinos para fundar a sua própria editora. Ela preferiu traduzir o
nome para o português: Catadora, em vez de Cartonera. O prenome
Dulcineia é uma homenagem dupla: à moça de quem compravam o papelão no
começo do negócio e também à musa de Dom Quixote.
A editora não abraçou a empreitada apenas pelo amor às
palavras. “É um trabalho artístico de cunho político e social”, define.
Ela faz questão de ver os catadores envolvidos nos projetos, não apenas
na função de fornecedores de matéria-prima. Acredita que a atividade é
um meio para se expressarem. Nas oficinas, quem passa os dias a recolher
o lixo transforma-se em professor e ensina iniciantes de todas as
classes. “Nesse momento eles se tornam protagonistas”, diz Lúcia Rosa,
também tradutora e artista plástica. No Brasil, outras editoras seguem a
mesma filosofia, embora, segundo a paulistana, não cheguem a dez e
alternem períodos ativos e inativos. A lista inclui a Estrela Cartonera,
Katarina Kartonera, Dengo-Dengo Cartoneiro e Cartonera Caraatapa.
Outra é a
Mariposa Cartonera, do Recife. Wellington de Melo, editor, igualmente
encara o trabalho como uma questão política e social. “As cartoneras são
formadas por gente envolvida com a leitura e a literatura, de verdade,
não apenas mascates. São autores comprometidos com sua literatura, mas
também com ideias do movimento, seu poder transformador. E isso não quer
dizer que a obra precisa ser panfletária. Falo do ato artístico
envolver estética e ética.” Para tocar o negócio, recolhe papelão por
onde passa e convida os interessados em colaborar para um mutirão de
produção. Também realizam cursos em hospital psiquiátrico e bairros
periféricos. A Mariposa Cartonera publicou até o momento nove títulos. O
último foi Inquebrável, Estelita para Cima, dividido em dois
volumes e com textos de Antonio Prata e Ronaldo Correia de Brito, entre
outros autores. Descontados os gastos, o dinheiro da venda da obra será
revertido para o Ocupe Estelita, movimento recifense que ficou famoso
recentemente por causa da repressão policial contra seus integrantes. A
preocupação social de Melo o une a Lúcia Rosa: “A questão política está
acima da literária, é a arte como resistência”, diz.
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