Como sói ocorre quando escrevo contra o discurso da direita intervencionista (que eu já chamei de “marchista” na época da Marcha pela Família, mas agora não se aplica), surgiram protestos e contra-argumentações. Como a direita felizmente usa a dialética ao invés da retórica (não sempre, mas na maioria das vezes), boa parte das objeções foram educadas. O que não significa que não tenham problemas lógicos que precisam ser tratados. Tratar esses problemas lógicos/morais é o objetivo deste novo texto. (O texto de ontem foi Lá vamos nós de novo: mais uma vez tenho que falar sobre discursos infelizes pedindo intevenção militar)
Uma das objeções aparece em forma daquilo que chamo de tática de “beco sem saída”. Ou seja, dizer que nos encontramos em uma situação limite, na qual “não temos outra alternativa senão a intervenção militar”. Note que mesmo que isso fosse verdade (e não é) não serve para refutar a comparação que fiz ontem a respeito do problema moral envolvendo o raciocínio intervencionista. Relembremos: eu disse que pedir intervenção militar à esta altura do campeonato (como em quase todas as situações) não passa da tática de se recorrer ao tapetão quando não se tem condições (ou principalmente disposição) para tentar vencer em campo.
Antes de refutar este aspecto, quero recomendar dois livros em especial: Gut Feelings, de Gerd Gigerenzer, e The Righteous Mind, the Jonathan Haidt. Em ambos os livros sabemos sobre experimentos nos falando a respeito dos “gut feelings” (ou o que chamamos aqui de reações do fígado), e das péssimas argumentações que, se estivermos desavisados em relação ao fenômeno, podemos fazer. Enfim, quando tentamos justificar um posicionamento político assumido pelas vias não racionais (pode ser pela emoção, imprinting ou mesmo manutenção de uma mania para atender a uma faceta de nossa personalidade), fazemos argumentações flagrantemente ilógicas para sustentar essa posição.
Um exemplo deste tipo de má argumentação pode ser vista na questão do aborto. Muitos direitistas defendem o direito do ser humano não ter o estado intervindo em sua vida, especialmente em questões relacionadas à tomada de risco. Em síntese, uma rejeição ao estado babá. Mas estas mesmas pessoas, se forem de orientação conservadora, podem, em alguns casos, usar o seguinte argumento: “Um dos problemas relacionados ao aborto é que a mãe ficará traumatizada pelo resto de sua vida”. Ué, mas ele não disse antes ser contra o estado babá? Nesse caso, temos uma flagrante contradição e um péssimo argumento criado para sustentar uma posição assumida de forma não-racional. (Eu não estou dizendo que argumentar contra o aborto ou tomar a opção pró-vida é algo automaticamente irracional, mas citando uma situação na qual usam-se argumentos irracionais para defender a posição pró-vida defendida de forma iracional)
Quando chegamos neste ponto, o termo recomendado por ambos autores é “racionalização”, que serve para definir argumentos não necessariamente racionais, mas uma tentativa de fazer algo irracional soar como racional. Tanto Haidt como Gigerenzer fazem um ótimo trabalho nos explicando como temos muito trabalho ao tratar destas racionalizações, por que muitos não as largam, mesmo diante de bons argumentos.
Ouso dizer que a maioria dos argumentos de “beco sem saída”, usados pelos intervencionistas são baseados em racionalizações deste tipo, e, portanto, dificilmente serão abandonados diante da argumentação.
Por exemplo, eles dizem que “está tudo dominado, portanto é impossível a vitória pelas vias democráticas”, mas como a coisa pode estar tão dominada se o PT anda desesperado para censurar a mídia e enfrenta atualmente um altíssimo indice de rejeição nas pesquisas? Fica claro que muitas dessas situações “extremas” são ampliações do real poderio do inimigo. E ainda temos que lembrar de Saul Alinsky nos dizendo que “poder não é o que você tem, mas o que o inimigo pensa que você tem”. Parece que o intervencionista usando o discurso do “beco sem saída” sempre tenta nos convencer que a situação chegou a um ponto diante do qual “não temos outra solução que não a intervenção militar”.
Também temos outro problema: qual é o “ponto” que justifica uma intervenção militar? Para o contra-golpe de 1964 tínhamos um golpe militar proposto pelos marxistas. Logo, era uma situação limite. Se o PT amanhã mesmo propor que as Forças Armadas ajudem na dissolução do Congresso, é claro que teríamos um argumento para uma intervenção militar que impeça o PT de fazer isso. Mas é claro que estamos longe de uma situação similar. Até por que os petistas são gramscianos enquanto os golpistas de 1964 não eram. Eles cometeram a precipitação de tentar um golpe armado (e por isso tomaram um contra-golpe), enquanto a extrema-esquerda atual jamais incorrerá no mesmo erro. Em outras palavras: a justificativa moral existente para o contra-golpe de 1964 não existe para uma intervenção hoje. E nem vai existir.
Mas e se o país estiver com as instituições tão danificadas a ponto de justificar uma intervenção militar? Isso nos leva a insistir no questionamento: qual é o “ponto” onde essa decisão pode ser tomada? A meu ver é um só: o momento onde começarem a ocorrer severas violações de direitos humanos, e exista uma crítica formal dos países mais civilizados do mundo em relação a isso. Algo como ocorre hoje na Coréia do Norte, frequentemente denunciada por violações de direitos humanos. Para quem usa a força para massacrar seu povo, sem qualquer respeito pela Declaração de Direitos Humanos da ONU (esse é um bom referencial), uma intervenção militar seria justificável, inclusive com a participação de outros países.
Mas não é o caso nem na Venezuela, mesmo que o país viva uma situação de caos. Gostem ou não, os governantes de lá foram eleitos por via democrática. Se eles aparelharam o estado de forma a solapar a plena democracia, ainda assim o fizeram a partir das instituições democráticas. Até por que existe um risco inerente na democracia: o domínio tão absoluto de um grupo sobre o outro que muitas vezes a democracia pode ser corrompida a ponto de ser similar à uma ditadura, que é o que ocorre na Venezuela – e tratarei deste ponto daqui a pouco. Mesmo assim, torno a dizer: tudo foi alcançado pela via democrática.
Na América Latina, o único país justificando uma intervenção militar é Cuba, até por que os governantes de lá tomaram o poder pela via armada, e exatamente por isso não possuem argumentos para reclamar do uso da força armada contra eles. Mas em qualquer outro país latino-americano, a tomada de poder socialista ocorreu pela via democrática, e, portanto não temos uma justificação moral para tirá-los do poder via intervenção militar.
Alguns poderiam dizer, com razão: “Mas eles controlam a mídia, os movimentos sociais e tudo o mais, então não temos chance”. Mas a resposta é só uma: eles ainda fizeram o que fizeram pela via democrática (mesmo que a tenham corrompido). E é por essa via que devemos derrubá-los. Eu estou plenamente ciente de que tudo se tornou dificílimo para os venezuelanos, e o mesmo pode ocorrer por aqui daqui a alguns anos. Mas ninguém disse que seria fácil. A direita tem errado por muito tempo em termos de estratégia política e isso é o que tem causado tanta dificuldade para nós.
Alias, a esquerda já abandonou qualquer discurso de tomada de poder por “intervenção militar” há mais de 50 anos, enquanto vemos algumas pessoas da direita ficando nessa conversa intervencionista. Se estamos deliberadamente atrasados no mínimo 50 anos em termos de estratégia política, em comparação aos ultra-esquerdistas, então o máximo que devíamos fazer era parabenizá-los por serem tão superiores em termos de tomada de poder pelas vias democráticas, que é a única maneira moralmente legítima de se chegar ao poder contra quem chegou lá jogando pelas regras do jogo democrático. (A exceção, repito, é Cuba, pois não quis jogar o jogo democrático ao chegar ao poder via intervenção armada)
Creio que já estressei esse ponto suficientemente, e chego ao segundo, onde os intervencionistas abandonam o argumento de “beco sem saída” e partem para dizer que “é injusto algumas pessoas pagarem pelo erro de outras”. Esse argumento surge quando dizemos a eles o seguinte: “Entendemos que a situação está crítica em vários países socialistas, mas isso ocorreu por erro dos eleitores e dos intelectuais orgânicos da oposição, que escolheram a opção errada. Que convivam com o erro por um tempo, até que a urgência os force a tirar os socialistas do poder”. Reconheço que ao dizer isso muitos intervencionistas se irritam, dizendo algo similar ao seguinte: “Você quer dizer que eu tenho que pagar pelo erro dos outros?”. Minha resposta: “Sim, tem, pois vivemos em uma democracia”.
Quando esses protestos surgem sinto que há uma falta de visão a respeito do que significa a política, como um todo, e especialmente o que significa a noção de responsabilidade política, tema que tratei no texto Aperitivos da Guerra Política – III – O princípio OZ.
Eis a dura realidade: em política não existem apenas “eles [os eleitores] errando”, mas, principalmente, nós, intelectuais orgânicos da luta direita X esquerda, ou seja, qualquer pessoa que se assuma como formador de opinião. Somos nós que direcionamos a opinião pública, independente do grau e da abrangência de nossa ação. A maioria absoluta da população vai bandear pro lado que tiver os melhores formadores de opinião e que estejam executando as melhores estratégias.
Não seria cego ao ponto de negar uma hegemonia esquerdista nos meios de comunicação, além do uso de ações censórias por parte da extrema-esquerda contra pessoas que se rebelam, mas esse item é apenas um dificultador, jamais um impossibilitador. Isso significa apenas que nós temos que ser mais perspicazes ao selecionarmos nossas estratégias, assim como colocar a censura petista como um dos principais aspectos sob nossa crítica. A meu ver não temos sido duros o suficiente na denunciação das tentativas de censura petista.
Um dos princípios fundamentais da democracia se baseia na soberania do povo, que toma decisões a partir do voto. Mas esse reconhecimento traz muitas verdades implícitas, algumas delas doloridas: nós, intelectuais orgânicos, devemos assumir nossa responsabilidade pelos resultados das eleições. Não temos “eles que votaram errado”, mas sim nós, que não fomos suficientemente bons na escolha dos nossos frames, que não escolhemos adequadamente nossas estratégias, e mesmo que tivéssemos ido bem nos dois itens anteriores, não usamos os frames e estratégias adequadas em quantidade suficiente, de acordo com as condições adversas que existem. Dito de outra forma, a responsabilidade dos resultados das eleições é, em grande parte, não do povo, mas dos intelectuais orgânicos.
Esse é o momento mais dolorido, onde uma análise holística da situação política nos leva a ter que aceitar a maior parte da culpa pelo atual estado de coisas. Não é a extrema-esquerda apenas que tem vencido (quer dizer, os intelectuais orgânicos da esquerda, hoje aparelhados pelo estado), mas nós, intelectuais orgânicos da direita, que não temos feito nosso trabalho. Reconhecer isso é o primeiro caminho para pensarmos em revisar nossas estratégias e, principalmente, o grau de nossa atuação.
Sem esse reconhecimento, nada feito. A mensagem dizendo “a culpa é dos eleitores que votam errado” é moralmente errada em vários aspectos, além de estrategicamente desastrosa. Primeiro, ela comunica um desrespeito à escolha do povo. Segundo, ela comunica ao nosso subconsciente a seguinte mensagem: “a responsabilidade não é nossa”. Mas se não reconhecermos essa responsabilidade aí é que os resultados não surgem mesmo. Faça o teste da não-responsabilização em qualquer contexto e veja os resultados. Tenho certeza que você conseguirá fazer qualquer time fracassar.
Enfim, na democracia, a vitória política não é definida basicamente “na hora da eleição”, mas na atuação dos intelectuais orgânicos de cada lado, o que se refletirá, evidentemente, não só nos resultados das eleições, como nas votações do Congresso, principalmente quando demonstramos de forma clara que muitas pessoas estão contra a aprovação ou rejeição de uma propostas, e fomos nós que as conscientizamos disso. Assim, não existe sentido na afirmação “é injusto que alguns paguem pelos erros dos outros”.
E falando em erro, quero concluir este tratamento de objeções (e creio que tratei algumas das mais importantes delas) lembrando que, além de ser um erro moral (propor intervenção militar é apelar ao tapetão) e um erro tático (estamos deixando de nos responsabilizar por ações relacionadas a vitorias em guerra política, o que devia ser nossa prioridade), é uma estratégia vergonhosamente equivocada.
Faço o seguinte paralelo: imagine que você pertença a um grupo de sujeitos que vão constantemente em bando nas baladas “pegar mulheres” – já sei que vou ser chamado de machista, mas se as mulheres se juntarem para “pegar homens”, é o direito delas. Seja lá como for, temos a constatação de um fato: as mulheres entendem que em qualquer processo de sedução, elas devem ter a ciência de escolherem seus parceiros voluntariamente, isto é, não serem forçadas a isso. E você deve sub-comunicar essa mensagem sempre. O poder da sedução está na percepção de que alguém não é forçado a se deixar seduzir. Agora imagine que um dos caras do seu grupo de baladeiros resolva dizer: “mulher não tem que ter opção de escolha pois não sabe escolher, sedução aqui é no porrete”. Você não morreria de vergonha de estar do lado de alguém usando tal tipo de discurso? Ou mesmo que te confundam com quem usa esse discurso somente por estar no mesmo grupo que ele? Você não procuraria se distanciar de gente que ao abrir a boca somente queima seu filme?
É assim que devíamos encarar o discurso intervencionista: como se fosse uma “doença” que causa danos aos direitistas dispostos a lutar na guerra política de verdade, de acordo com os parâmetros gramscianos de tomada de poder (sempre pelas vias democráticas), e até mesmo os parâmetros sharpianos (cujos métodos são focados na luta diante de ditaduras já estabelecidas). Qualquer outra opção é imoral, infrutífera e só serve para queimar o filme.
E tudo fica ainda mais bizarro quando visualizarmos em um momento singular do atual governo, onde eles tentam implementar o Decreto 8243, censurar empresas como Empiricus e Santander, controlar a mídia e realizar diversas outras ações de ditadura sutil. Nunca tivemos um momento histórico onde pudemos lançar um shaming contra eles a partir do frame mostrando que somos pessoas lutando pela a liberdade, nos opondo a censores. Nunca foi tão fácil mostrar, com evidências, que o rótulo “totalitário” se aplica perfeitamente a eles. E o que fazemos? Deixamos que algumas pessoa da direita façam vicejar movimentos pedindo “intervenção militar”. Quer dizer, perderam o frame “liberdade contra a tirania”, em torno de uma opção politica que fica abaixo da crítica.
Entendo que tratei as principais objeções ao texto anterior, mas também entendo que novas racionalizações vão surgir. Se surgir algo de novo, tratarei em mais um texto. Por enquanto a mensagem que fica é: “fujam do discurso intervencionista como o vampiro foge da luz do dia”.
P.S.1: Para finalizar, não quero ser arrogante de me posicionar como um “Gramsci da direita”, em termos de fornecimento a estrategias para a direita. Mas não posso deixar de citar o fato de que me inspirei no histórico de Gramsci ao ver como ele gastou uma boa parte de seu tempo criticando vários comunistas de sua época pelas estratégias erradas que estes usavam. Se Gramsci incomodou pessoas com as quais se alinhava politicamente em sua época, não me incomodo em fazer o mesmo hoje, e estou ciente de que esse texto vai incomodar algumas pessoas da direita. Peço que se alguém se encaixar entre os ofendidos, que não leve para o pessoal, pois meu único interesse é discutir estratégias que funcionem. Se algum ofendido quiser responder, ótimo, mas peço que não se apele a “gut feelings”, mas a argumentos e citações de estrategistas políticos que validem uma estratégia política baseada em pedir “intervenção militar”. A meu ver, isso não funciona muito, e ao meu lado tenho uma base de autores, tanto da esquerda (principalmente) como direita, endossando minha rejeição a discursos pedindo “intervenção militar”. Mas, como já disse, se há contra-argumentos, que se apresentem.
P.S.2: Hoje foi um dia atípico, pois trouxe dois textos longos para este blog (e outros dois textos curtos, sendo o outro texto logo O que Andrew Napolitano está querendo nos dizer a respeito da fraude na democracia?). Esse que você acabou de ler, editado no Word, deu mais de 10 páginas. Ambos foram feitos no espaço de 2 horas, a partir das 20 horas (sim, eu sei, eu sempre escrevo neste período, entre 20 e 21 hrs., mas hoje ultrapassei o limite). Por causa a quantidade e da rapidez, posso ter deixado alguma coisa passar batido em termos de variação de terminologias, maneirismos e coisas do tipo. Mas vai ficar assim mesmo, pois eu não poderia deixar passar de hoje para publicar esse texto.
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