quarta-feira, 30 de julho de 2014

Panela de pressão


As grandes cidades concentram os problemas da vida brasileira e dependem de uma força-tarefa para superá-los
por Ana Carolina Amaral — publicado CARTA CAPITAL
Marcelo Camargo/Agência Brasil
Transporte
As cidades podem se tornar um caldeirão de frustrações dos seus habitantes
Os protestos de junho do ano passado deixaram claro que as metrópoles brasileiras transformaram-se em um caldeirão de frustrações dos habitantes e de demandas não realizadas pelo poder público. Transporte ineficiente, violência incontrolável, sistema de saúde deficitário, ausência de áreas de lazer e convivência. Morar em grandes cidades tornou-se um inferno e dar as respostas corretas, um desafio inadiável dos administradores em todos os níveis de poder.
Com a intenção de discutir os problemas e oferecer soluções que alterem a realidade nas regiões metropolitanas, CartaCapital iniciou por São Paulo, na segunda-feira 21, um ciclo de eventos da série Diálogos Capitais intitulada “Metrópoles Brasileiras – O futuro planejado”. Até o fim de 2014, mais quatro cidades receberão o seminário: Recife, Belo Horizonte, Porto Alegre e Belém. “A vida nas metrópoles abre uma nova perspectiva no processo civilizatório e oferece uma multiplicidade de desafios de gestão que precisam ser mais bem compreendidos”, afirmou o economista Luiz Gonzaga Belluzzo, consultor editorial da revista, na abertura do evento.
Segundo Nádia Campeão, prefeita em exercício de São Paulo, os desafios vão muito além dos dois ou três pontos que emergem em pesquisas, entre eles mobilidade, segurança e saúde. “São Paulo é um universo de demandas que precisam sempre ser atendidas, e agora, com o novo Plano Diretor Estratégico, aprovado pela Câmara logo após a final da Copa do Mundo, o poder público ganha um eixo de atuação”, acredita. O tamanho do desafio é explicitado com a multiplicidade de polos de desenvolvimento, que chegam a 120 em toda a cidade.
A aprovação do Plano Diretor, descreveu a prefeita em exercício, envolveu 114 audiências públicas e a participação in loco de 25 mil cidadãos, além das contribuições online e em documentos. Um dos avanços foi a criação dos “conselhos de subprefeituras, conselhos setoriais e conselho da cidade”. Um dos pontos críticos da gestão, contrabalança, é o fato de nenhuma prefeitura conseguir fazer nada sozinha. “É preciso a integração dos esforços entre os municípios vizinhos, o estado e o governo federal, senão as coisas não andam ou ficam desconectadas.” A capital paulista, embora administrada pelo mesmo partido da presidenta da República, ainda não conseguiu avançar na renegociação da dívida da cidade, na adaptação dos critérios do Minha Casa Minha Vida ou mesmo na articulação conjunta necessária para atender às promessas feitas ao Movimento dos Trabalhadores Sem Teto.
A falta de alinhamento entre as diversas instâncias de poder, atesta Raquel Rolnik, urbanista e professora da USP, ameaça a vida nas grandes cidades: o descasamento de agendas entre os diversos atores que causam impacto nas cidades. Raquel listou algumas metrópoles que superaram a fragmentação político-administrativa com a transformação da visão de território. “Enquanto Tóquio e Frankfurt são administradas como Estados, nosso pacto federativo é subdesenvolvido e baseado em interesses privados, políticos ou de parcelas do território.”
A urbanista defendeu maior autonomia financeira para as cidades. Segundo ela, a taxação do patrimônio por meio do IPTU é um instrumento legítimo e acusou a mídia e os grandes grupos imobiliários de boicotarem as iniciativas para a recuperação dos valores. Dessa forma, uma cidade como São Paulo fica à mercê de doações voluntárias da União. “O governo federal oferece, no entanto, uma máquina de construção de casas, canos, vias, não uma estrutura de financiamento. Ou seja, a política é para objetos inauguráveis, e não para uma urbanidade integrada.”
A atual Lei de Licitações também foi criticada. Haroldo Pinheiro, presidente do Conselho de Arquitetura e Urbanismo do Brasil, apontou a legislação como um dos principais empecilhos à planificação das ações urbanas. “Desde 1993, a Lei de Licitações excluiu o planejamento como condição para projetos de construção, admitindo-se apenas o projeto básico para se licitar.” Em nome da agilidade, o regime diferenciado de contratação agrava ainda mais a situação, pois “entrega ao empreiteiro a responsabilidade pelo projeto”. Desse modo, afirmou Pinheiro, o Estado abre mão da responsabilidade pelo planejamento das cidades e repassa à iniciativa privada, que tem o lucro como prioridade.
Esse tipo de PPP recebeu muitas críticas dos participantes da principal mesa-redonda realizada pela manhã. Raquel a descreveu como “extremamente perigosa”. “As PPPs representam a privatização total do espaço urbano.”
O modelo de consulta pública baseada em audiências e em representantes eleitos também oferece obstáculo para a gestão pública, pelo fato de nem sempre conseguir captar os anseios da sociedade. Encontrar maneiras de compreender as demandas de movimentos policêntricos e sem um foco claramente identificável, a exemplo das manifestações de junho do ano passado, é um desafio próprio do século XXI e deve ser tratado como tal. Assim observou Patricia Ellen da Silva, sócia-diretora da McKinsey América Latina. Durante sua exposição, a consultora procurou demonstrar que tecnologias podem ser excelentes aliadas para a formulação de políticas públicas em grandes centros urbanos. Segundo Patricia Ellen, há 95 milhões de brasileiros conectados em redes sociais e 76 milhões apenas no Facebook. Os usuários são de todas as classes sociais. Desse total, 34% publicam dados sobre organizações de todos os perfis e influenciam o fluxo de informações nas redes.
O engajamento digital muda o comportamento e a expectativa dos cidadãos, que passam a exigir mais honestidade e transparência das organizações públicas e privadas. As mídias sociais foram as protagonistas das manifestações de junho, ao atingir mais de 1,8 milhão de mensagens por dia naquele mês, com 75% de mensagens positivas ou neutras sobre os atos. “Ali perdemos uma chance incrível de entender o que estava acontecendo e abrir diálogo de forma construtiva”, opina a consultora. Sem propor qualquer tipo de monitoramento ou controle individualizado, a especialista vê os avanços da mobilidade digital como um instrumento valioso para o planejamento urbano. “Não quero saber o que um determinado indivíduo está fazendo, mas quais os grandes fluxos de pessoas e o que estão apontando como dilemas.” De acordo com ela, os dados estão disponíveis a partir do acompanhamento anônimo dos celulares, entre outras ferramentas.
A tecnologia poderia ajudar a monitorar em tempo real, descreve a diretora da McKinsey, casos de dengue e direcionar a ação pública de forma mais eficaz no território. “Isso já é realidade em outros temas, como em APPs que monitoram trânsito ou bares e restaurantes”, compara. Algumas prefeituras têm avançado na relação com a sociedade, diz, entre elas a do Recife, onde um grupo de jovens empreendedores criou a rede social Colab, que permite a cidadãos conectados apontarem problemas na cidade, avaliarem serviços públicos e proporem soluções. A tecnologia pode de fato conectar a sociedade ao poder público. Hoje, quatro prefeituras adotaram essa fórmula como canal oficial com a população: Curitiba e Foz do Iguaçu, no Paraná, Rondonópolis, em Mato Grosso, e Teresina, no Piauí. Em junho, a solução venceu o prêmio internacional AppMyCity como “melhor aplicativo urbano do mundo”. O diferencial do Colab é que ele promove o diálogo, ativa a inteligência coletiva das cidades.

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