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Milhares de pessoas participaram da “Marcha da Família com Deus pela Liberdade”, véspera do golpe
Esperadas para o dia 22 de março em todo o país, novas edições de um
dos episódios mais marcantes da história recente do Brasil. A Marcha da
Família com Deus pela Liberdade foi o nome comum de uma série de
manifestações públicas ocorridas entre 19 de março e 8 de junho de 1964
no Brasil, em resposta à “ameaça comunista” representada pelo discurso
em comício realizado pelo então presidente João Goulart, em 13 de março
daquele mesmo ano.
Após a tomada do poder pelos militares, em 31 de março, o movimento que
reunia os setores mais conservadores da sociedade mudou o nome das
manifestações para Marchas da Vitória. Mais de um milhão de pessoas
participaram das Marchas que tinham inicialmente o intuito de derrubar o
governo Goulart. A primeira foi realizada em 19 de março – dia de São
José, padroeiro das famílias – em São Paulo e reuniu entre 300 e 500 mil
pessoas.
O Retorno
Cinquenta anos depois, as marchas podem voltar a ser vistas pelo país,
mesmo não havendo mais uma ameaça comunista a ser combatida. A data, 22
de março, está sendo divulgada nas redes sociais como o dia para se
realizar uma série de “Marchas pela Família com Deus II, o retorno”, uma
espécie de reedição das manifestações populares que deram respaldo ao
golpe militar, com a deposição do presidente João Goulart, em uma das
mais duras fases da história política do Brasil.
Uma busca rápida no Facebook expõe ao menos 20 eventos nesse sentido.
Passeatas estão previstas para Belo Horizonte, São Paulo, Vitória,
Manaus, Rio de Janeiro, Fortaleza, Porto Alegre e outras inúmeras
localidades.
Memória Frágil
A historiadora da UFMG Regina Helena Alves da Silva acredita que muitos
participantes desses movimentos sequer sabem exatamente o que a Marcha
da Família representou no contexto histórico do golpe de 1964 e o motivo
seria a forma como o país lida com sua história.
“O país tratou a ditadura com esse jeitinho brasileiro. Não fez como a
Argentina, que encarou o problema, foi atrás dos fatos. Até o tipo de
anistia que tivemos, que a tudo perdoou, inclusive torturadores, de
certa forma é como se anistiássemos o governo que usou a tortura. Você
cria uma memória muito frágil, falsa, que serve a isso que está
acontecendo. Tem muita gente que acha que a ditadura foi um período bom,
foi um momento de liberdade, sequer entende o sentido do termo”.
Numa das páginas do Facebook criadas para a “Marcha da Família com Deus
II, o retorno”, o texto de apresentação diz que trata-se de uma “marcha
pacifica contra tudo o que o comunismo e a cultura da morte tem
desenvolvido e tem tentado em nosso país para destruir os valores da
vida e da família”. O texto diz ainda que “direitistas que clamam por
intervenção militar e monarquistas serão todos bem - vindos”.
Na página do evento criado para Porto Alegre, o texto de apresentação
diz que “não houve uma ‘ditadura militar’ como nos foi contado, mas uma
intervenção militar para salvar o Brasil de uma ditadura comunista”. E
prossegue: “Saiba, porém, que se ficarmos de braços cruzados, a próxima
geração conhecerá apenas a perniciosa doutrina marxista, será induzida
ao homossexualismo contra a sua vontade e talvez até nos condenem”. O
tom é semelhante ao que agregou milhares de pessoas em torno de uma
série de eventos ocorridos às vésperas do golpe.
Descrença
O professor do departamento de Ciências Sociais da PUC e membro do
Fórum Brasileiro de Segurança Pública, Robson Sávio, avalia que temos
hoje no Brasil um discurso do medo, uma proliferação de notícias
negativas, o que gera descrença nas instituições democráticas e faz
insurgir grupos radicais tanto de direita quanto de esquerda. “A direita
conservadora, mais volumosa, apresenta soluções extremas que geralmente
seguem em duas vias: uma seria a necessidade da figura de um
‘salvador’, como aconteceu na construção da imagem de Fernando Collor,
ou mais recentemente, de Joaquim Barbosa. Outra seria o restabelecimento
da ordem com a intervenção militar. Mas grupos de extrema esquerda
também têm suas soluções radicais para resolver o problema do medo”.
O sociólogo ainda reforça que a maioria dos integrantes desses
movimentos é jovem e desconhece o que de fato foi a ditadura militar.
“Esta juventude não tem consciência do que seria um regime repressor.
Como eles lidariam, por exemplo, com a restrição da liberdade, do acesso
até às redes sociais, tão presentes hoje?”.
Até o fechamento desta edição, nenhum dos organizadores das marchas pelas redes sociais retornou as ligações do Hoje em Dia.
Especialistas minimizam poder das ‘marchas’
Em um dos panfletos publicados na rede, o texto diz: “Há cinquenta
anos, no dia 19 de março de 1964, nossos pais e avós foram as (sic) ruas
e conseguiram a redenção do povo brasileiro. Eles tiveram coragem.
Agora é a nossa vez”.
Contudo, o professor do departamento de Ciências Sociais da PUC Robson
Sávio descarta a possibilidade de estas manifestações terem força para
reeditar um regime militar no Brasil. “Nossa democracia hoje é mais
forte. As instituições democráticas funcionam e não há uma conjuntura
mundial para instauração de uma ditadura de direita no país”, afirma.
Robson ainda analisa que o processo de inclusão social pelo qual tem
passado o país nos últimos 20 anos gera um certo desconforto na classe
média conservadora.
“Numa sociedade mais democrática, em que os direitos são estendidos,
ficam incomodados. Eles se pensam como sujeitos de direitos em
detrimento do resto da população. Falam o tempo todo na democracia, mas
uma democracia que não é inclusiva. E esse discurso se amplia na rede
social”, diz.
A historiadora da UFMG, Regina Helena, pondera que mesmo naquela
época, quando a marcha conseguiu colocar milhares de pessoas nas ruas,
fazendo com que o golpe militar tivesse uma justificativa no clamor
popular, esse apoio não era tão consistente.
“Pesquisas mais aprofundadas mostram que a participação popular não foi tão grande assim”.
“Como movimento político, essas manifestações não têm nenhuma
expressão”, afirma o jornalista José Maria Rabelo, que viveu os “anos de
chumbo”, e foi exilado por mais de 15 anos.
“Em 1964, a sociedade foi envolvida na conspiração golpista. Aqui, em
Minas Gerais, havia os ‘Novos Inconfidentes’, grupos de direita que
conspiravam contra o governo. Havia organismos muito atuantes na
preparação do golpe, além do apoio de entidades representativas do
empresariado e do clero”.
O historiador da UFMG, Rodrigo Sá Motta, reforça que no contexto atual
ele vê apenas uma semelhança com aquela época: “Temos um governo de
centro-esquerda com propostas de reforma social, algumas vezes gerando
críticas conservadoras agudas, com argumentos parecidos, atacando a
suposta demagogia e o risco de ligações comunistas”.
Motta avalia que prevalecem as diferenças entre os dois contextos, que
são enormes. “Não existe crise econômica, nem o quadro da Guerra Fria
e, além disso, os militares estão afastados da política”.
Partidários defendem intervenção militar branca
Uma “intervenção militar branca”. É o que defendem os partidários da
“Marcha da Família com Deus II, o retorno”. Segundo um dos organizadores
do evento, o empresário Carlos Carvalho Júnior, que nasceu três anos
após o golpe militar, o movimento é “grande e sério”.
Aos 47 anos, Carlos Carvalho mora em Itápolis, interior de São Paulo,
de onde estima que sairão cerca de 100 pessoas em caravana, rumo à
capital paulista, para participar da marcha no dia 22 de março. O
empresário espera que este seja o maior ato do país, reunindo pelo menos
50 mil pessoas.
“Nós defendemos a intervenção militar nos três Poderes (Executivo,
Legislativo e Judiciário). Que as pessoas que estão desmoralizando o
Brasil sejam afastadas e se faça uma devassa. Quem cometeu crimes, como
lavagem de dinheiro, desvio, corrupção, deve ser preso. Depois disso,
que se faça eleição. Não defendemos que se mexa nos direitos
constitucionais e civis das pessoas”, diz.
De acordo com Carlos Carvalho, assim como ele, neto de um
tenente-coronel da Aeronáutica, a maioria dos manifestantes é de
parentes de militares da ativa, reformados e da reserva. Questionado se
não temem a instauração de um regime repressor, Carlos diz que não. “Até
porque a cabeça dos militares é diferente e não cabe mais repressão”,
defende.
Ponto a ponto
• Em 25de agosto de 1961, acreditando que voltaria aclamado pelo povo,
Jânio Quadros renuncia ao cargo de presidente da República. Como o
vice, João Goulart, o Jango, se encontra em visita oficial na China
Comunista, o presidente da Câmara, Ranieri Mazzili, assume
provisoriamente o governo.
• Em 2 de setembro de 1961, o Congresso aprova emenda constitucional
que estabelece o parlamentarismo. A medida limita os poderes de Jango,
condição para retirada do veto dos ministros militares à sua posse.
• Em 7 de setembro de 1961, Jango toma posse e tem Tancredo Neves como primeiro-ministro.
• Em 6 de janeiro de 1963, o presidencialismo vence o plebiscito sobre
o regime de governo no Brasil, restituindo plenos poderes a Jango. O
presidente tenta adotar uma política de esquerda e sofre forte oposição
dos direitistas. É visto como uma ameaça comunista.
• Em 2 de março de 1963, Jango promulga o Estatuto do Trabalhador Rural.
• Em 31 de dezembro de 1963, anuncia plano de reformas e adverte que
em 1964 as necessidades da nação serão atendidas a qualquer preço.
• Em 13 de março de 1964, faz comício para mais de 200 mil pessoas na
Central do Brasil, no Rio, anunciando reformas de base. Decreta a
nacionalização das refinarias de petróleo e reforma agrária.
• Em 19 de março de 1964, em resposta ao comício de Jango, 500 mil
pessoas participam da “Marcha da Família com Deus pela Liberdade” no
Centro de São Paulo. O movimento de base religiosa tem como objetivo
envolver o povo no combate ao comunismo.
• Em 24 de março de 1964 começa a revolta dos marinheiros, em uma
assembleia com mais de 2 mil marinheiros de baixa patente, no Rio. Eles
exigem melhores condições para os militares e apoiam as reformas de base
de Jango. O então ministro da Marinha, Sílvio Mota, ordena a prisão dos
líderes do movimento e é exonerado por Jango.
• Em 28 de março de 1964, se reúnem em Juiz de Fora (MG) os generais
Olímpio Mourão Filho e Odílio Denys com o governador Magalhães Pinto. O
dia 4 de abril é estabelecido como data de início da mobilização militar
para tomada do poder.
• Em 31 de março de 1964, o general Olímpio Mourão Filho se antecipa e
parte com suas tropas de Juiz de Fora para o Rio. Jango é deposto e se
refugia no Uruguai. O Congresso Brasileiro declara o cargo de presidente
vago. As eleições presidenciais prometidas para 1965 não são realizadas
e os militares passam a eleger os presidentes indiretamente.
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