segunda-feira, 31 de março de 2014

Governo dos EUA monitorou onda de greves dos metalúrgicos no ABC em 1979

Presidente do sindicato de metalúrgicos de São Bernardo do Campo, Lula foi um dos líderes das greves
Presidente do sindicato de metalúrgicos de São Bernardo do Campo, Lula foi um dos líderes das greves Foto: Divulgação



Flávia Barbosa - O Globo

WASHINGTON - Os Estados Unidos acompanharam com lupa a onda de greves dos metalúrgicos do ABC paulista em 1979, lideradas pelos então sindicalistas Luiz Inácio Lula da Silva, Benedito Marcílio e João Lins Pereira, temendo que um confronto prolongado e a politização dos sindicatos interrompessem o processo de abertura, retardando a redemocratização. Documentos dos arquivos do Departamento de Estado, do Conselho de Segurança Nacional e da Agência Central de Inteligência (CIA) durante o governo do presidente Jimmy Carter (1977-1981), aos quais O GLOBO teve acesso, mostram apreensão, especialmente com a intervenção nas organizações e as destituições de Lula e Marcílio, no dia seguinte à visita do vice-presidente Walter Mondale a Brasília, ocorrida em 22 de março de 1979. Os papéis também registram comparações entre o clima político daquele momento com os episódios que antecederam o golpe de 1964.
Relatório da CIA produzido em agosto de 1979, enviado pelo Departamento de Estado à Casa Branca, avalia que as greves, intensas desde o início do ano, impunham um dilema para o general João Batista Figueiredo, que tomara posse em março prometendo aprofundar a abertura política iniciada por seu antecessor, general Ernesto Geisel. A insatisfação com a crise econômica e o espaço de discordância aberto pela própria flexibilização do regime operada por Geisel eram vistos na administração Carter como catalisadores dos protestos.
Ligações com sindicatos
“À medida que as demandas civis proliferam, o regime terá dificuldade em escolher entre a continuidade da liberalização e o uso de mão firme para lidar com a situação de desordem política civil — muito parecida com a situação que foi explorada pela esquerda e que levou à intervenção militar mais de 15 anos atrás”, diz o relatório, que permaneceu sigiloso até 2011.
A preocupação americana vinha desde março, com a explosão dos protestos a partir do dia 13. Escolhidos para liderar a delegação americana à posse de Figueiredo, em 15 de março, a mulher do vice-presidente, Joan Mondale, e o secretário do Trabalho, Ray Marshall, foram instruídos pelo Departamento de Estado a abordar o novo ministro do Trabalho, Murilo Macedo, para coletar informações sobre a forma como o governo brasileiro pretendia intervir nas negociações coletivas, que começariam em abril, e o plano de Brasília para as relações com os sindicatos a médio prazo.
Os documentos consultados pelo GLOBO não afirmam isso, mas os indícios são de que a escolha de Marshall para acompanhar Mondale refletiu a preocupação da Casa Branca e da diplomacia dos EUA com os distúrbios entre trabalhadores e governo. A administração democrata mantinha ligações próximas com a maior entidade sindical americana, a AFL-CIO, que, por sua vez, havia começado a prestar assistência aos sindicatos brasileiros.
“Sinais de inquietação no movimento sindical e a determinação deste em expandir sua influência a partir de agora atestam a importância desta posição ministerial. Até agora, o movimento sindical organizado tem se atido a assuntos relacionados ao bolso, aumentando sua influência nas políticas do governo do Brasil; no entanto, alguns políticos estão interessados em politizar esse importante elemento da sociedade brasileira”, diz o documento.
Lula visto como ‘apartidário’
A avaliação foi reforçada em encontros de Marshall com empresários americanos, no Rio de Janeiro, durante a visita. Executivos expuseram ao secretário temor de que a pressão dos sindicalistas por negociação dos trabalhadores diretamente com as empresas, longe do guarda-chuva das confederações controladas pelo Estado, “poderia levar à politização do movimento sindical”. Na ocasião, o subsecretário Howard Samuel se encontrou com quatro das oito confederações legalmente estabelecidas no Brasil àquela altura: Comunicações, Ferroviários, Comércio e Bancários.
O vice-presidente Mondale desembarcou no Brasil para encontros com o vice Aureliano Chaves e o presidente brasileiro em 22 de março, dia anterior à decisão de Figueiredo de intervir em três sindicatos de metalúrgicos do ABC, destituindo Lula da presidência da entidade de São Bernardo do Campo. Os eventos que se seguiram — com a repressão da tropa de choque ao movimento e o engajamento da Igreja e do MDB em defesa da pauta e dos direitos dos sindicalistas — levaram o embaixador dos EUA, Robert Sayre, a advertir o Departamento de Estado:
“O alinhamento não partidário do sindicato de São Bernardo estabelecido por Lula está se esvaindo à medida em que a greve se torna mais politizada, com ativa intervenção de deputados estaduais e federais do MDB e da Igreja. Os bispos de São Bernardo e São Caetano vêm agindo ativamente em apoio à greve e igrejas estão servindo de locais de reunião no lugar das sedes dos sindicatos sob intervenção. Empresas, sindicatos e governo estão todos diante da probabilidade de que qualquer sucessor na direção dos sindicatos pode ser mais militante e ideologicamente orientado do que os depostos”.
A situação acendeu a luz amarela no Departamento de Estado e no Conselho de Segurança Nacional. Um desdobramento indesejável da coincidência de datas entre a intervenção nos sindicatos e a visita de Mondale era a percepção do público no Brasil — em particular da oposição, que os EUA, àquela altura, tentava cultivar — de que o vice-presidente discutira a medida com Figueiredo e a havia avalizado. Memorando conjunto do subsecretário de Estado para Assuntos Interamericanos, Viron Vaky, e de sua contraparte no Conselho, Robert Pastor, sugere que os EUA, se questionado publicamente, negasse que Mondale tivesse tratado do tema, por intermédio da embaixada e de consulados.
Alerta para Figueiredo
Nos bastidores, a decisão foi fazer chegar ao governo do Brasil a inquietação americana. O embaixador Sayre foi instruído a escolher um interlocutor de alto nível em Brasília para “deixar claro como a ação de Figueiredo será vista internacionalmente”, segundo memorando do Conselho de Segurança Nacional assinado por Vaky e Pastor e endereçado a Mondale, cujo objetivo era dar o tom das conversas de Sayre:
“Direitos trabalhistas são, claro, um importante elementos dos direitos humanos, e o discurso de posse enfático feito por Figueiredo inclui, portanto, esta preocupação. A decisão de intervir no sindicato dos metalúrgicos pode ser vista internacionalmente como um afastamento deste compromisso e, portanto, seria uma fonte de preocupação para todos os países que observam os passos positivos do Brasil em direção à liberalização”.


JORNAL EXTRA

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