JOSÉ HORTA MANZANO
CORREIO BRAZILIENSE - 04/01
Desde que o mundo é mundo, a humanidade cultiva dois temas sensíveis:
raça e religião. Lidar com eles requer prudência e tato. Evitar
acidentes é dever de todos.
Embora a razão de ser de toda religião
seja a crença na continuação da vida após a morte física, a diversidade
de ritos, dogmas, preceitos, obrigações, proibições é notável. Cada
credo tem seu catálogo de regras. O assunto, delicado, é daqueles que se
há de tratar com luvas e pinça. Muita guerra já se travou e muita gente
já morreu por divergências religiosas.
O Brasil teve sorte. As práticas animistas dos habitantes originários
e o aporte de tradições africanas atenuaram a rigidez e o dogmatismo de
colonizadores e de imigrantes. Embora nem sempre nos apercebamos disso,
é de reconhecer que não padecemos de conflitos religiosos. Vão longe os
tempos da Controvérsia de Valladolid, da Inquisição e das conversões
forçadas. O afluxo de gente de vários quadrantes incutiu tolerância à
índole nacional.
Visto assim do alto, esse traço de nosso caráter pode até parecer
banal. Pois não é. Há pontos no globo onde ainda se luta por
divergências de fé. Como prova, estão aí a Irlanda do Norte, o Egito, o
Sudão, o Tibete. Até na Europa Ocidental, fricções de ordem religiosa
obrigam parlamentos a legislar sobre vestimenta feminina - o porte da
burca ou do véu islâmico, por exemplo. Em nossas terras, a sunga e o fio
dental já cuidaram de banir esses rigores. Nosso problema está
resolvido.
O racismo, outro tema sensível, planta raízes nos estratos mais
primitivos do subconsciente. É a manifestação da desconfiança que
dedicamos aos que não pertencem a nosso clã. Na prática, esse sentimento
se exprime por meio da repulsa aos que têm cor de pele diferente da
nossa, que não falam nossa língua, que não se comportam como nós. Em
resumo: rejeitamos o que foge à norma.
Países onde coexistem etnias diferentes costumam ser palco de
fricções. Um nada pode provocar conflitos. Essa intolerância está na
raiz de atritos crônicos na Palestina, na Síria, no Iraque, na Índia, na
Rússia. Na mesma linha, rebeliões nas periferias francesas e surtos de
violência nos EUA nos lembram que a paz racial está longe de ser
conquista planetária.
Múltiplos fatores forjaram o Brasil. Temos qualidades de fazer
inveja: clima agradável, gente afável, ambiente tolerante, povo
acolhedor. Mas arrastamos problemas pesados: corrupção, paternalismo,
baixa instrução crônica, gritantes disparidades econômicas.
"Deus é brasileiro", dizemos às vezes. Pois olhe, ainda que não passe
de um dito jocoso, o fato é que, até hoje, conseguimos escapar da
armadilha dos dois grandes tabus. Costumamos encarar com bonomia a
diversidade religiosa de nosso povo. Tem até gente que professa duas
religiões! A fé - ou a descrença - de cada um não constitui obstáculo à
convivência. Na esfera racial, a intensa miscigenação do povo é a prova
maior de que a tolerância e a flexibilidade são a regra, não a exceção. E
é melhor assim.
Sabe-se lá por que, de uns anos para cá, o ideal de igualdade e de
unidade que alicerça nossa sociedade vem sendo artificialmente solapado.
O elenco de normas oficiais passou a dispensar tratamento diferente a
determinadas categorias de cidadãos segundo critérios raciais. Cotas e
quilombos - noções inexistentes até há pouco tempo - entraram na pauta
da modernidade brasileira.
A intenção, apesar de leviana, foi nobre. Já o resultado, a médio
prazo, pode escorregar para ladeira perigosa e não prevista.
"Discriminação positiva" é conceito ambíguo: positiva ou negativa,
discriminação será sempre discriminação. Para subir de um lado, a
gangorra tem de descer do outro. A cada vez que um grupo de cidadãos for
privilegiado, a lógica elementar ensina que outro grupo será
obrigatoriamente defraudado.
Políticas desse jaez trafegam na contramão do processo civilizatório -
são danosas para a consolidação de um sentimento de unidade nacional.
Pelo contrário, podem atiçar melindres raciais, semear ressentimentos e
abalar a concórdia que costumava reinar entre nós.
Se o nível de instrução pública é baixo, que se faça o necessário
para elevá-lo. Dar como favas contadas que alguns são menos instruídos
que outros unicamente por terem cor de pele diferente é generalização
barata, uma falácia, uma ofensa. Estamos cutucando a onça com vara
curta. Cuidado, ela pode se enervar! Que a aragem leve do novo ano sopre
sabedoria a nosso legislador. Mais vale recuar enquanto é tempo.
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