DORA KRAMER - O Estado de S.Paulo
Até pela prática autoritária e centralizadora da
presidente da República, conhecida por não dar autonomia nem aos
ministros "da casa", não é crível que o governo tenha deixado para o
terceiro escalão uma decisão como a antecipação dos pagamentos aos
beneficiários de programa tão estratégico (sob todos os aspectos) como o
Bolsa Família. Se algo tão importante quanto alterações no cronograma de liberação do dinheiro foi feito sem ao menos se informar à diretoria específica (Habitação), pior ainda. Quer dizer que nem a joia da coroa está a salvo da impressão de bagunça - política e administrativamente falando - que assola o governo de Dilma Rousseff. Sob qualquer ângulo que se olhe, a história é uma peneira.
Recapitulando: nos dias 18 e 19 de maio houve uma corrida aos caixas eletrônicos da Caixa Econômica Federal devido a boatos sobre o fim do programa. No dia seguinte, a CEF anunciou que antecipara os pagamentos para segunda-feira, 20, a fim de aplacar os ânimos dos beneficiários.
Em seguida, mudou a versão: segundo o vice-presidente responsável pela área, os saques haviam na verdade sido antecipados para o fim de semana, mas ele não sabia. Horas depois, a ministra do Desenvolvimento Social confirmou que os pagamentos haviam sido liberados por causa dos boatos.
Uma semana depois, o presidente da Caixa informou que o calendário na verdade fora alterado no dia anterior aos boatos, 17 de maio, e atribuiu a decisão à área operacional da CEF, que nada lhe comunicara.
Nesse meio tempo, a ministra dos Direitos Humanos saiu dizendo que o falatório era coisa da oposição e o ministro da Justiça declarou que havia sinais de "ação orquestrada".
Como se viu, o maestro da cacofonia foi o próprio governo. Junto a versões difundidas pela assessoria de imprensa do Palácio do Planalto sobre a "irritação" da presidente com o episódio - que, aliás, havia sido qualificado por ela como ato criminoso - , o presidente da CEF nesta segunda-feira deu uma entrevista para supostamente esclarecer as coisas.
Disse que levou uma semana para falar porque precisava "entender com clareza" o que acontecera. Ora, se real a explicação fornecida por ele, não precisava de muito esforço de compreensão.
Disse que a Caixa cometeu uma "imprecisão" decorrente do nervosismo diante do corre-corre e dos boatos. Não foi uma imprecisão, foi mentira mesmo dizer que o adiantamento deveu-se aos saques em quantidade anormal quando se sabia que a antecipação fora ordenada na véspera.
Disse que a CEF não considerou necessário avisar a ninguém - e aqui falamos dos "clientes" do programa - porque em média "apenas" 70% dos beneficiários fazem saques nos dias marcados nos respectivos cartões. Ou seja, a ampla maioria, que por si só justificaria um aviso.
O dado concreto e o efeito substantivo de uma confusão dessas é o abalo da confiabilidade do governo numa parcela da população que até agora estava alheia ao debate, digamos, de elite, sobre a ineficácia da administração federal.
O que era conversa de políticos insatisfeitos com a desarticulação no Congresso e com o trato dado a partidos aliados; o que era tema de empresários agastados com o travamento dos negócios devido à falta de infraestrutura; o que era assunto de economistas sobre alta de inflação e maquiagem de dados estatísticos, chegou àquele setor da sociedade que assegura altos índices de popularidade à presidente.
Uma derrapagem na curva capaz de abrir o mais sério flanco por onde os adversários de Dilma encontrem matéria-prima para estabelecer diálogo com o grosso da população sobre a qualidade da gestão daqueles que comandam e pretendem comandar por muito tempo o Brasil.
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