sábado, 30 de junho de 2012

Autodidata produz 'cajóns' com sons exóticos após vencer doença terminal


Cícero Simão trabalha a madeira com 30% de capacidade respiratória.
Ele produz cajóns com sons exóticos e tenta recriar carreira de luthier.

Tatiana Maria Dourado Do G1 BA

Cícero Simão Luthier Salvador Bahia (Foto: Reprodução/ TV Bahia)Cícero Simão cria série com onze cajons em pequeno apartamento em Salvador  (Foto: Reprodução/ TV Bahia)
Cícero Aristides Simão tem 51 anos e meia dúzia de cajóns, instrumentos percussivos seculares de origem peruana. As caixas de madeiras começaram a ser produzidas por acaso, em fevereiro deste ano, e ganham destaque entre plásticos e papelões empilhados na única parede "livre" dos 15m² de seu apartamento alugado, situado na Liberdade, bairro periférico da capital baiana. As peças musicais possuem, contudo, aspectos distintos das referências originais do vizinho latino: são assimétricas e entoam sons exóticos de correlatos percussivos como timbau, atabaque e zabumba, por exemplo.
O projeto dos cajóns é um escape na vida desse luthier - profissional que cria instrumentos - iniciado na atividade na década de 1970. Há pelo menos quatro anos, Cícero Simão teve que abdicar do emprego de técnico de edificação, e da arte de projetar, para cuidar dos efeitos terminais da Doença Pulmonar Obstrutiva Crônica (DPOC) que adquiriu. Da conversa com médicos, diz que, entre as causas, estão o histórico de 22 anos de cigarro, mais 21 de consumo exarcerbado de álcool, além das consequências do contato diário com o pó da madeira, expelido durante as suas atividades. Por tudo isso, ele aprende a lidar diariamente com apenas 30% que restam de sua capacidade respiratória, controlada pelas baterias obrigatórias de remédios.
"Esses aqui eu chamo de cajón porque tem formato de caixa, mas posso até mudar o nome. Eu pego referências de sons desses outros instrumentos [zabumba, por exemplo] e adapto à estrutura. Se não der certo, já é um som diferente. Essa é a vantagem!", diz o projetista, que não acredita ser a música simplesmente som. (Os percusionistas  Mikael Mutti e Duda Mendes experimentam os sons dos cajons no vídeo ao lado. Confira).
De primeira, ele tentou esboçar a craviola, instrumento de doze cordas idealizado pelo músico paulistano Paulinho Nogueira, mas a mistura de cravo com viola do luthier nordestino não deu certo. "Aquilo me fascinou, mas desmontei toda", recorda. Teve êxito no experimento seguinte, em 1976, com um violão, vendido a cruzeiros que renderam a compra de um tênis Topper, uma calça Lee e o prazer de diversas idas ao cinema. Desde o princípio, a proposta é incitar novas sonoridades à estrutura das peças.
"Era um violão mesmo, de pegar, usar, tocar. Depois desse, vieram mais três. Esse primeiro violão um rapaz tem como relíquia [conforme contou de um amigo]. Eu fui improvisando, porque era o primeiro e tudo custa muito dinheiro. E lá na minha terra [cidade de Rio Largo, em Alagoas], a questão do comércio é sempre complicada. Até as tarraxas que afinam a corda não tinham para vender. Eu tinha que usar o sistema de cravilhas ainda, tipo de violino", lembra.
MotivaçãoCatólico praticante e já compositor de 248 músicas sacras, o primeiro cajón assinado por Cícero foi feito com restos de madeira, guardados até então sem motivos, e doado para uma igreja da Liberdade. A ideia surgiu de forma despretensiosa pelo padre do templo e já ajuda a motivar nova dinâmica na rotina do luthier.
Cícero Simão Salvador Bahia (Foto: Tatiana Maria Dourado/G1)Cícero evita construir peças maiores por conta da
estrutura da casa (Foto: Tatiana Maria Dourado/G1)
"Usava-se timbau na banda de lá. Até que o padre novo me disse: 'Cícero, eu gosto muito daquele instrumento, não tem como colocar aqui não?' Pensei em dar um cajón para a igreja, mas quem tocaria? Bater é uma coisa, tocar é outra. Mas tem um menino, que chamo de 'Pancadão', temos ligação muito profunda. Dei e ele fez um estrago com o cajón! Pensei que já tinha valido a pena, fiquei arrepiado", conta.
Os cajóns são batizados e catalogados com as iniciais "IRP", que faz referência à Igor Rafael, 11 anos, o "Pancadão", um de seus principais incentivadores. Procurado, "Pancadão" conta que os cajóns são muito úteis para animar os encontros em sua casa, sempre ritmados por muito samba. "É um instrumento bom, tem som diferente, até legal para tocar sambinha. Quando ele vem aqui, o povo começa a dançar", descreve o pequeno, que, apesar da afinidade e dom para a arte, adora observar a mecânica de carros e planeja ser engenheiro. A dupla até planejou vender os cajóns na orla de Salvador, mas o projeto ainda não pôde ser executado porque os instrumentos já foram doados ou vendidos ao custo de R$ 260. A "ambição" de Cícero com os cajóns é, principalmente, "ter comida todo mês para estar bem".
LuteriaFabricar instrumentos sempre serviu para Cícero manter contato com a arte que admira, a música, e incrementar a renda que obtinha como operário da construção. Tecnicamente, utiliza os conceitos desenvolvidos pelo renomado luthier espanhol Antônio de Torres. Apaixonado e habilidoso com a madeira, principal matéria-prima do trabalho, ele sempre estudou a luteria de modo autodidata, com livros ou revistas, em bibliotecas e conversando com seus pares. Em tempo de internet, dedica-se a fóruns online para se atualizar sobre as novidades.
Contudo, foge à lógica da formação acadêmica e critica algumas ideias fixas da atividade, como a rigidez do número restrito de tipos de madeira para o fabrico de determinado instrumento. (Cícero Simão explica a acústica de um instrumento artesanal feito por luthier. Confira no vídeo ao lado).
"Torres e outros dão duas ou três opções de madeira para cada instrumento. Eu, na minha luteria, acredito que com qualquer madeira é possível fazer instrumento. O importante é como ela será trabalhada. Isso porque mesmo a madeira seifada na mata, na floresta, continua viva e reage", avalia. Sempre artesanal, Cícero já criou, com o seu conceito, versões de pandeiro, cavaquinho e viola. "O músico não dá importância à qualidade da acústica porque precisa de barulho. É raro um som acústico, intimista. O bom é a capela, sem microfone, é muito prazeroso", opina Cícero.

Luthier veterano e reconhecido em Salvador, Jorge Marinho desconhece colegas em Salvador, "salvo um ou outro" - soma apenas três. Cícero não é um dos. Dono de uma oficina e atuante há 17 anos na atividade, Marinho planeja criar uma associação para estreitar os laços entre os "cientistas", como gosta de nomear os luthiers. "Somos cientistas, misto de arquiteto, engenheiro, músico e carpinteiro. Se analisar cada coisa, tem que saber muito de mecânica, da sônica da madeira, matemática, física, ferramentaria, noções de lógica, domínio de música", enumera.

Marinho acredita que, na essência, a luteria é artesanal, mas que o uso da tecnologia é necessário para agilizar o tempo de produção dos profissionais que têm inserção no mercado. Por demanda dos clientes, mistura o eletrônico ao artensal, tradição da atividade, na constituição do instrumento. "Tem várias linhas de luthier. Quem trabalha na mão, somente na mão, são pessoas raríssimas no Brasil. Mas conheço alguns que não tem formação nenhuma, são raridades", diz.
Música é tudo. O universo canta. Gosto do som que conforta. Não gosto de música para dançar, sou mais espacial
Cícero Simão
Superação
A vida de Cícero Simão é embalada pelas lembranças musicais, mesmo sem ter rádio em casa (cantarola apenas com seu violão). No dia-a-dia, acorda pontualmente às 4h50, ingere o primeiro comprimido, toma banho, fica à espera do próximo medicamento, e assim por diante.
Cícero Simão na juventude (Foto: Cícero Simão/Arquivo Pessoal)Cícero Simão na juventude: carreira de cantor foi
abandonada (Foto: Cícero Simão/Arquivo Pessoal)
"Na década de 1870-1980, o Hollywood era sucesso. Namorei com uma pessoa que fumava e, quando acabei, meu organismo pedia cigarro. Um dia, na escola, um colega me viu fumando um superleve, tomou da minha mão e disse que cigarro de homem era Hollywood. Veio o problema no pulmão e me vi em estado terminal”, relata.

Muito antes de parar de fumar, há cinco anos, já havia terminado a relação com o vício da bebida, cuja convivência durou 21 anos. “Eu tive que trabalhar de domingo a domingo porque a pessoa que é alcóolatra precisa de referencial, todo dia é batalha. Ainda hoje se eu for a uma festa, tomando apenas água mineral, tônica ou refrigerante, no outro dia estou de ressaca. De ressaca mesmo! Não é moleza”, afirma.
A insuficiência respiratória freou o sonho de trabalhar ou ser cantor, como sempre quis, mas não o distanciou da música, para ele, a maior de todas as artes. “A música é tudo. O universo canta, as estrelas, tudo está cantando. É quando você chora, ri, lembra, dança, se expressa de tudo o que é forma. Em mim, me acalma, eu consigo dar uma direção de vida e de amizade. Gosto de tudo o que é música, mais da canção que dê conforto. Não gosto de música para dançar, sou mais espacial”, descreve.

Cícero é eclético e entende que a música supre a necessidade de cada realidade social. “Aqui na Bahia, por exemplo, o cara sai 4h de casa, pega a bacia, bota a água para esquentar, porque não tem como tomar banho quente, sobe a ladeira, a escada para pagar o ônibus, que não tem hora para passar, vai trabalhar e, quando volta, não vai querer escutar grandes compositores. Escuta algo que lhe dê o falso conforto e que sirva para tomar a cerveja dele”, opina.
Gilberto Gil, Caetano Veloso, Elis Regina, Emílio Santiago, Benito de Paula, Jackson do Pandeiro, Ari Lobo e Luiz Gonzaga estão sempre presentes em sua memória. “Não tenho som, mas, se não lembro a letra toda, cantarolo a música e fico viajando na maionese”, e ri.

Nenhum comentário:

Postar um comentário