O
processo para conseguir a cidadania italiana sofreu diferentes mudanças
em 2022. Desde o final de junho, o critério de definição da competência
passou a ser cidade de origem do Dante Causa (ascendente italiano
nascido na Itália) do(s) autor(es) da ação. Portanto, o foro competente
passou a ser o Tribunal da cidade capital da região de origem
(“capoluogo regionale”), e não mais exclusivamente o Tribunal de Roma,
como acontecia até então.
Esta
descentralização da competência dos Tribunais, que chegou com a
promessa de trazer uma celeridade importante ao julgamento dos
processos, pode fazer com que haja decisões de entendimentos variados
sobre uma mesma questão, o que já não acontecia no Tribunal de Roma. O
objetivo principal da reforma, de acordo com o Ministério da Justiça
Italiana, é diminuir em 40% os tempos processuais, facilitando a vida
dos requerentes.
Contudo,
paralelamente à essa mudança processual, há alguns meses havia ganhado
espaço, no âmbito judicial, a tese da Grande Naturalização. Tal tese
acabou sendo considerada um imbróglio jurídico que acabava por
atrapalhar os planos imediatos de algumas famílias que possuem uma
árvore genealógica datada do século 19, e construir um panorama jurídico
de incertezas.
Como
já amplamente pauta do pelo ALM Advogada Associadas, escritório com
sede no Brasil, Portugal e Itália, que auxilia estrangeiros na busca
pela cidadania europeia, a tese da Grande Naturalização nasceu com a
Proclamação da República, no dia 15 de novembro de 1989, quando ficou
instaurado, via decreto 58A14, de dezembro de 1989, que qualquer
estrangeiro estabelecido no Brasil, antes de 15 de novembro, seria
reconhecido brasileiro. Na época, a medida foi até bem vista, justamente
pelo Brasil sempre ser lembrado por ser um país acolhedor,
hospitaleiro, o que acontece até hoje.
Sendo
assim, todo estrangeiro que não se manifestasse em ato público, lavrado
em livro próprio, até o dia 15 de novembro de 1889, seria considerado
um cidadão brasileiro. O problema é que até 1912, na Itália, não existia
a dupla cidadania, ou seja, o italiano que morava no Brasil até 1889
acabou se tornando brasileiro, de maneira quase que automática, e
consequentemente perdeu a cidadania italiana. Foi só em 1912 que a
Itália regulamentou a dupla cidadania, baseada num código civil de 1875,
do artigo 11.
Este
imbróglio jurídico foi pauta do ALM Advogadas Associadas, que
esclarecia exatamente o que ocorria nos Tribunais italianos. Diferentes
turmas da mesma Corte D’Appello di Roma e da Corte D’Apello di L’Aquila
divergem a respeito do tema e emanam acórdãos com fundamentações
jurídicas pouco plausíveis e sustentáveis, indeferindo, assim, o
reconhecimento da cidadania a vários descendentes de cidadãos italianos
com linhas de descendência comprovadas documentalmente.
É
o que explica a mestre em direito pela Universidade de Bolonha, que se
dedica principalmente aos processos no Tribunal de Roma, e
sócia-diretora do ALM, Karla Leal Macedo. “A tese da Grande
Naturalização desnorteava as decisões em segunda instância das Cortes
Italianas. Era um capítulo
conturbado de uma história onde, em cada página, eram apresentadas
‘novidades’ interpretativas que endereçavam cada decisão para rumos
desconhecidos e aparentemente absurdos, juridicamente falando. Mas, foi
por nós amplamente sublinhado que o Tribunal de Roma, em primeira
instância, sempre refutou em suas sentenças (“ordinanze”) o acolhimento
de tal tese”, disse Karla.
No
entanto, recentemente, duas decisões, publicadas no final de agosto de
2022, vieram esclarecer e uniformizar esse panorama jurídico que deixava
muitos requerentes com uma sensação de incerteza quanto ao
reconhecimento da cidadania italiana iure sanguinis, acalentando milhões de descendentes de cidadãos italianos.
Quarenta
e três de uma e 41 páginas de outra, as decisões das “Sezioni Unite”,
da Corte di Cassazione da Itália, chegaram para driblar a Grande
Naturalização.
Antes
de adentrar aos princípios delimitados por tais decisões, faz-se
necessário esclarecer que a matéria tratada (reconhecimento da cidadania
italiana iure sanguinis), por ser considerada de particular
importância e de repercussão geral, ao ser impetrada em via recursal
junto à “Corte di Cassazione”, foi direcionada para apreciação junto à
“Sezioni Unite” de referida Corte.
“Sezioni
Unite” nada mais é que uma formação especial do colégio de Ministros,
que julgam questões de relevância nacional e internacional. É composta
por 9 votantes, investidos de função nomofilácica, ou seja, uma função
decisória cujo principal objetivo é promover a padronização do
entendimento jurisprudencial, garantindo assim a exata observação e
uniformização na interpretação da lei, com o intuito principal de
preservar o direito objetivo nacional.
Os
casos que chegaram para julgamento perante a Corte di Cassazione
seguiram seguinte percurso: ajuizada ação de reconhecimento de cidadania
italiana junto ao Tribunal de Roma, tiveram o reconhecimento da
cidadania italiana deferido pelo juiz de primeira instância. Em seguida,
foi apresentada apelação em segunda instância junto à Corte D’Appello
promovida pelo “Ministero dell’Interno” juntamente com o “Ministero
degli affari esteri”.
Em
apelação, foi ratificada a aplicação da tese da Grande Naturalização
aos casos, que foi acolhida e acabou por indeferir os pedidos de
reconhecimento iure sanguinis da cidadania italiana dos
descendentes em questão. Contra os referidos acórdãos, foram
apresentados recursos junto à Corte di Cassazione por parte dos
descendentes, e, sendo, como já mencionado, uma causa de particular
importância, foram remetidas para apreciação das “Sezioni Unite”.
No
último dia 12 de julho, em sessão pública, foi realizado o julgamento
presencial e recentemente, no último dia 24 de agosto, foram publicadas
as tão esperadas decisões. Com o julgamento colegiado, os acórdãos da
Corte D’Appello di Roma foram impugnados e as causas devidamente
remetidas para nova apreciação de uniformização junto à Corte D’Appello
de origem, sendo determinada uma nova formação colegial, bem como, que,
para novo julgamento, a Corte deverá se ater a determinados princípios
de direito. Neste caso, foram delineados quatro princípios de direito que o ALM Advogadas Associadas destrincha para um maior esclarecimento.
I. Comprovação da descendência italiana: documental.
As
“Sezioni Unite” esclarecem que dentro de uma tradição jurídica
italiana, desde o sistema delineado pelo Código Civil de 1865, seguido
pela Lei específica sobre Cidadania (Lei nº 555 de 1912) e pela atual
Lei nº 91 de 1992, a cidadania por nascimento se adquire por título
originário iure sanguinis, e o status de cidadão, uma vez que
adquirido, possui natureza permanente e é imprescritível e passível de
invocação perante os tribunais a qualquer tempo, diante da apresentação e
comprovação dos elementos constitutivos da transmissão da descendência,
juntamente com a comprovação do nascimento do antenado italiano. Quem
requerer o reconhecimento da cidadania italiana tem que comprovar
somente a transmissão de sua descendência, ao passo que cabe à outra
parte recorrida, que tenha suscitado dúvida, a eventual prova de um fato
de interrupção da transmissão da descendência. Portanto, caso o
Ministero dell’Interno tenha dúvida, ou levante suspeita que a
transmissão tenha sido interrompida, ele tem que provar tal feito, e não
os descendentes têm que provar o contrário.
II. Perda da cidadania italiana: ato espontâneo e voluntário.
Quanto
à perda da cidadania, como era prevista no Código de 1865, as “Sezioni
Unite” esclarecem que a menção ali estabelecida se dá quando alguém
“obtinha a cidadania em um país exterior”. Para efeito, na linha de
transmissão iure sanguinis aos descendentes, deve ser
considerada uma ação completa em si mesma: deve se ter a certeza de que a
ação (como ato de agir) tenha sido realizada por parte da pessoa
emigrada à época, com um ato espontâneo e voluntário, com a finalidade
de obtenção da cidadania estrangeira. Ademais, para ser considerada em
toda a sua eficácia, deve ser acompanhada de um pedido de inscrição nas
listas eleitorais. O simples fato de ter estabelecido a residência no
exterior, ou de ter estabelecido uma vida social no país de emigração,
não implica em condição de completude do ato de obtenção da cidadania em
si. Portanto, nenhum ascendente italiano da época perdeu a cidadania
por ato de naturalização de massa, sem ter realizado um ato espontâneo e
voluntário, seguido de um comportamento que demonstre tal vontade, como
por exemplo, inscrição junto às listas eleitorais, assumindo os
direitos civis e políticos de uma nova condição.
III. Direito à Cidadania: um direito subjetivo permanente e imprescritível.
O
direito à cidadania pertence ao rol dos direitos fundamentais, e não é
considerado aplicável a tais direitos a extensão automática de qualquer
presunção. Assim, Le Sezioni esclarecem que, de acordo com a aplicação
combinada de várias normas e tratados internacionais, cada pessoa possui
direito subjetivo permanente e imprescritível quanto ao status de
cidadão, e que tal direito pode ser perdido exclusivamente por renúncia,
sempre que seja voluntária e expressa, em obséquio à liberdade
individual de cada um; portanto, nunca por renúncia tácita, qualquer
modalidade que seja exercida tal renúncia, nem, tampouco, por uma
aceitação tácita de cidadania estrangeira imposta por uma disposição
geral/de massa de naturalização. Portanto, o decreto brasileiro 58-A, de
15/11/1889, que decretava a naturalização de todo estrangeiro presente
em território brasileiro, não pode ser considerado instrumento de perda
de cidadania originária, sem que o atingido pela norma declare que,
assumindo a nova condição, queria a perda da condição anterior.
IV. Aceitação de emprego público e seus efeitos no direito à cidadania.
Em
uma das várias decisões da Corte D’Appello de Roma que acataram a tese
da Grande Naturalização, foi alegado que o ascendente italiano nato que
“sem a permissão do governo” tivesse “aceitado um emprego por parte de
um governo exterior” ou “tivesse feito o serviço militar de potência
exterior”, teria perdido a cidadania de origem, qual seja, a cidadania
italiana; afirmando que por “governo” deveria ser entendido tanto a
administração pública, bem como o órgão de governo que regulamenta e
consente ao cidadão estrangeiro o direito de viver e trabalhar no País
para onde emigrou. As “sezioni” mais uma vez refutaram esse
entendimento, esclarecendo que na expressão “emprego por parte do
governo”, o termo “governo” deve ser entendido em uma interpretação
restritiva, sendo considerado somente os empregos governamentais, que
tenham como consequência a assunção de funções públicas no exterior, que
imponham obrigações de hierarquia e fidelidade ao Estado estrangeiro
(no caso, o Brasil), de natureza estável e tendencialmente definitiva.
Não pode, desta forma, ser considerada e nem interpretada a aceitação de
um emprego, o simples fato ou simples circunstância de ter exercido uma
atividade de trabalho qualquer, público ou particular, ou o simples
fato de ter se estabelecido no país e ter criado uma família,
incluindo-se na vida social e econômica da cidade.
Após
a delimitação de tais pontos cruciais para a aplicação interpretativa
da Lei da cidadania, o recente julgamento em grau superior realizado
pela “Sezioni unite” da Corte di Cassazione italiana reenviou os
recursos para nova apreciação perante a Corte D’Appelo di Roma, cassando
o primeiro acórdão recorrido.
“Acredita-se
que tal decisão venha frear as demasiadas apelações que vinham sendo
inconsequentemente ajuizadas com base nesta tese, e que venha também
delinear a correta interpretação dos casos que estão sendo ajuizados
junto aos novos tribunais italianos competentes, desde julho. Sabe-se
que, para muitos tribunais, a constatação e reconhecimento da cidadania
italiana é um tema de novo contato e apreciação, e ter um documento que
delineie interpretações, facilitará a atuação dos profissionais do
setor, bem como promoverá uma maior segurança jurídica. E que todos em
campo possam gritar pela merecida vitória!”, frisou a sócia-diretora do
ALM Advogadas Associadas, Karla Leal Macedo.
Ainda
segundo Karla, a realidade atual é que o Ministero dell’Interno está
desistindo de inúmeras apelações que estão em curso em segunda instância
junto à Corte D’Appello di Roma; e, em primeira instância, no Tribunal
de Roma, não está se manifestando, ou quando o faz, se manifesta sem
contestar o mérito do pedido judicial.
Sobre o ALM Advogadas Associadas
O
ALM Advogadas Associadas é um escritório com sede no Brasil, Portugal e
Itália, que auxilia estrangeiros na busca pela cidadania europeia.
Comandada pelas advogadas no Brasil, na Itália e em Portugal, Karla Leal
Macedo, mestre em direito pela Universidade de Bolonha, que se dedica
principalmente aos processos no Tribunal de Roma, Rebeca Albuquerque,
especialista em compliance e em direito internacional, e Vanessa Lopes,
especialista em direito civil, atuante em direito imigratório, com mais
de 10 anos de experiência em cidadania portuguesa, o ALM Advogadas
Associadas nasceu para ser o elo entre história e o futuro, entre o
Brasil e a Europa, e para auxiliar no processo que envolve histórias,
documentos, pesquisa e aspectos jurídicos ligados ao processo de
reconhecimento da cidadania.
https://almdireitoacidadania.com/
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