BLOG ORLANDO TAMBOSI
Ensaio do professor Bernardo Lins Brandão para o Estado da Arte:
Vivemos
em tempos complexos. O progresso tecnológico nos levou a uma revolução
permanente. Trouxe-nos ilimitadas possibilidades, mas riscos também. Se,
nas discussões do dia a dia, os temas são sempre os mesmos (esquerda x
direita, liberalismo x estatismo ou as pautas da ocasião), inúmeros são
os desafios que devemos encarar. A política real, não a versão
simplificada que os marqueteiros fazem dela, se torna, a cada dia, mais
complicada e é por isso que a redescoberta da sabedoria se torna cada
vez mais urgente.
Diante
de nossos presentes desafios, não estamos sós. Podemos contar com o
auxílio da ciência e da técnica: dos dados e medições que nos trazem
maior precisão, das métricas que são essenciais para a tomada de
decisões, da inovação que amplia nossa margem de ação e torna hoje
possível o que ontem não era. Mas a técnica não é o bastante. Quando
esperamos que ela vá resolver todos os nossos problemas, acabamos por
cair em uma sutil forma de tirania, a tecnocracia, que abole o humano e
coloca a eficiência em seu lugar.
Isaiah
Berlin, em seu ensaio Political Judgement, critica filósofos e
reformadores políticos do séc. XVIII e XIX como Saint-Simon, Fourier e
Comte, Hegel, Marx e Spengler em sua busca por uma ciência do humano
capaz de ditar de modo infalível as ações dos estadistas, tal como as
leis da física determinam o maquinário das fábricas. Talvez ninguém,
afirma Berlin, tenha feito tanto para minar nossa confiança em um tal
empreendimento quanto os grandes tiranos de nosso tempo: Lenin, Stalin e
Hitler. Podemos opô-los em campos opostos: esquerda e direita,
comunismo e nazismo. Mas eles guardavam, entre si, uma inspiração
similar: uma confiança ilimitada na técnica e em sua capacidade de se
sobrepor indefinidamente às realidades da vida.
Isaiah Berlin |
Uma
planilha de dados, por si mesma, nada significa. Ela deve ser
interpretada. E bem sabemos como é fácil, a partir dela, tirarmos as
mais variadas conclusões. Na política, como bem mostrou Jerry Muller em
seu A Tirania da Métrica, o elemento quantitativo é inescapável, mas
deve ser reintegrado ao qualitativo se não quer levar a escolhas
desastrosas. Uma política da técnica precisa ser complementada por uma
política da alma (para falar com John Milbank), o que não denota uma
opção religiosa ou filosófica em especial, mas o cultivo daquilo que
temos propriamente de humano, de nossa realidade pessoal, para além do
que a métrica, mesmo as mais refinadas, podem captar.
O
homem é um ser multidimensional, não um corpo a ser administrado. É por
isso que devemos recuperar uma noção esquecida, mas que era bem
conhecida pelos gregos antigos, que a cultivavam na pólis como uma tábua
de salvação: a phrónesis, termo que é frequentemente traduzido por
prudência, mas que poderia mais adequadamente ser vertido por sabedoria
ou, melhor ainda, sabedoria prática.
A
phrónesis é a sabedoria que se volta para a realidade concreta, para o
que é irredutível à esquemas e teorias; ela compreende as regras, mas
percebe as exceções; conhece os princípios e, a partir deles, é capaz de
improvisar; capta o bem a ser perseguido e o busca segundo o kairós — o
tempo oportuno para cada ação. Para Aristóteles, era o coroamento das
virtudes humanas e a virtude política por excelência.
Isaiah
Berlin, no já referido ensaio, escreve que o estadista é bem-sucedido
quando não pensa em termos gerais, mas é capaz de captar a combinação
única de características que constituem uma situação em concreto. Ele
compreende o caráter de um movimento em particular, de um indivíduo em
particular, de uma atmosfera ou estado de coisas em sua combinação
particular de fatores econômicos, políticos e pessoais. E faz isso
justamente por ser dotado de sabedoria prática, que Berlin entende como
uma percepção do que é qualitativo e não quantitativo, específico e não
geral, uma intuição da realidade concreta que não se reduz à descrição
ou a inferência.
Mas,
se uma tal capacidade continua a ser essencial, hoje mais do que nunca,
como podemos cultivá-la? Berlin duvida que ela possa ser ensinada, mas a
sua aquisição, desde os gregos até as primeiras décadas do século XX,
foi o objetivo central de muitos e notáveis projetos educacionais, da
educação retórica dos antigos às escolas catedrais do séc. XI, da
pedagogia jesuíta à liberal education americana até a II Guerra. Em
todos eles, entendia-se, como escreveu Ash Milton e Stephen Pimentel em
um recente artigo para a Palladium (Liberal Education is Applied
History), que a arte da política era inseparável do cuidado com a alma,
pois era por meio de um tal cultivo que a sabedoria poderia florescer.
Um
ser humano não nasce pronto. Suas potências do corpo e do espírito
precisam ser desenvolvidas para que cheguem ao máximo esplendor. Esse é o
caso da phrónesis: não é um fruto da sorte, mas o produto de um longo
processo formativo que, de fato, nunca termina e que depende da empeiría
e do mythos, da meléte e da áskesis, isto é, da experiência e das
narrativas que nos tornam inteligível a existência, da meditação
frequente e da ação que nos tira da zona de conforto e nos faz crescer.
Além disso, um ser humano prudente, assim entendiam Platão e
Aristóteles, era virtuoso, dotado de coragem, temperança e justiça em
máximo grau, o que tampouco era fruto do acaso, mas o resultado de uma
vontade determinada e de uma boa educação.
Precisamos,
assim, não apenas de uma educação para a técnica, como a que temos
hoje, capaz, em seus melhores momentos, de produzir bons especialistas,
mas inútil para levar ao bom senso. Precisamos de uma educação para a
sabedoria, uma educação para o humano, uma formação integral que leve em
conta a multidimensionalidade de nosso ser.
Os
gregos começavam sua educação para a prudência com a ginástica e a
música, o treino do corpo e da alma. Mas mousiké, para eles, não
significava simplesmente a arte dos sons, mas a poesia de modo geral. É
que a alma humana é formada sobretudo por meio de uma educação
literária, filosófica e histórica, do convívio com os grandes pensadores
e escritores que é capaz de expandir os horizontes de nosso mundo, de
ensinar-nos a nomear a experiência interior e integrar, em nossa
compreensão das situações, a multiplicidade de perspectivas que estão
ali implicadas. Eles também praticavam as disciplinas da gramática,
retórica e lógica, que desenvolviam habilidades da linguagem e do
pensamento: a leitura, a expressão e a compreensão. E ainda, se
dedicavam à aquisição de uma cultura geral, que lhes trazia uma visão
mais profunda do mundo, e à reflexão a respeito das diversas situações,
de modo a aperfeiçoar, com essa prática, o que Berlin chamou, em seu
ensaio, de juízo político.
Entre
nossa educação para a técnica e a educação humanística dos gregos, não
precisamos escolher. Temos necessidade das duas; a educação para a
prudência é antídoto para os excessos da técnica, mas é a técnica aliada
à prudência a nossa melhor chance de superarmos nossos desafios atuais.
Precisamos, talvez, como pensava Platão, de reis (e presidentes,
prefeitos e legisladores) filósofos, mas também, para usar a expressão
de Indy Johar, de philosopher-makers, pessoas dedicadas à ação e a
inovação, mas, ao mesmo tempo, ancoradas em uma profunda reflexão. Essa é
justamente a obra da sabedoria prática.
Alegoria da prudência por Ticiano (c. 1550-1565) |
Bernardo
Lins Brandão é doutor em Filosofia. Foi professor na PUC-MG, UFOP e
UFPR. Atualmente é professor de Grego Antigo na UFMG. É autor do livro
'Rua Musas' e tradutor de 'Plotino (Sobre o Bem e o Um) e Agostinho (Do
Livre-arbítrio).'
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