Embora
já tivesse uma longa carreira como deputado, Jair Bolsonaro elegeu-se
presidente prometendo combater os velhos hábitos da política. O discurso
não durou muito. Tão logo assumiu o Palácio do Planalto, ele começou a
se render ao que há de pior em Brasília. Aos primeiros sinais de que era
preciso compor com uma parcela do Congresso Nacional, ele piscou e logo
fechou uma aliança com o fisiológico Centrão. Desde então, começou a
pagar o preço para ter uma base parlamentar capaz de lhe dar sustentação
mínima na Câmara e no Senado. No ano passado, quando estava em vias de
sacramentar a aliança, veio a abertura dos cofres. E não apenas pelas
vias tradicionais. Para dissimular a distribuição de dinheiro público
para os aliados mais fiéis, o governo criou um duto diferente: uma
espécie de orçamento paralelo em que bilhões de reais são destinados a
alguns ministérios e gastos, por debaixo dos panos, de acordo com o
interesse de parlamentares escolhidos a dedo pelo Planalto.
A
lógica é a mesma dos escândalos que emergiram nos governos anteriores:
usar dinheiro público para garantir o apoio de congressistas. Era assim
no mensalão, o esquema descoberto no primeiro mandato de Lula, e era
assim no petrolão, em que contratos gigantescos da Petrobras se
convertiam em propinas para políticos aliados do governo. A diferença é
que, agora, sob Bolsonaro, a coisa se dá com recursos do orçamento,
usando de subterfúgios para maquiar a distribuição. A partir do instante
em que o Planalto se viu na necessidade de construir uma base no
Congresso – e foi então apresentado à fatura que seria preciso pagar –,
coube à Secretaria de Governo, então comandada pelo general Luiz Eduardo
Ramos, hoje chefe da Casa Civil, a tarefa de organizar a partilha. A
ideia foi gestada a partir de uma parceria do palácio com o Congresso.
Para o modelo dar certo, foi preciso criar a figura das “emendas de
relator”, em que um pedaço dos gastos anuais do governo tem
necessariamente que ser aplicado de acordo com a indicação do
parlamentar escolhido para ser o relator do orçamento federal,
normalmente um aliado do governo. Só no passado, esse naco foi de 20
bilhões de reais.
Estava
pavimentado, assim, o caminho para que as verbas fossem distribuídas de
acordo com a conveniência do próprio governo e seus aliados
preferenciais no parlamento. Como mostrou o jornal O Estado de S. Paulo,
só o Ministério do Desenvolvimento Regional, comandado por Rogério
Marinho, recebeu 3 bilhões de reais. A dinheirama passou a ser gasta
pela pasta de acordo com uma planilha elaborada pelo Planalto na qual
deputados e senadores foram agraciados, na medida de sua importância e
de sua lealdade ao governo, com valores que eles próprios podiam dizer
onde deveriam ser alocados. Uma vez listados como “beneficiários”,
bastava que eles enviassem ao ministério uma comunicação apontando onde
queriam que o dinheiro fosse parar. A partilha teve seu auge no processo
que elegeu Arthur Lira e Rodrigo Pacheco, ambos candidatos apoiados
pelo Planalto, para as presidências das duas casas do Congresso. “É um
mensalão disfarçado de emendas parlamentares. Compra explícita de apoio
político”, diz Gil Castello Branco, da ONG Contas Abertas, que monitora
os gastos públicos.
Sabia-se,
até agora, que uma parte das indicações dos parlamentares foi
destinada, por exemplo, à compra de tratores com preços superfaturados
em mais de 200%. Faltava ainda apontar quem se beneficiou do dinheiro,
lá na ponta. A partir das planilhas e dos ofícios enviados ao
ministério, Crusoé seguiu o caminho de uma parte da verba para saber
exatamente onde ela foi parar. O resultado confirma a lógica: depois de
ser transferida para a Companhia de Desenvolvimento dos Vales do São
Francisco e do Parnaíba (Codevasf), uma companhia estatal dominada pelo
Centrão que foi anabolizada justamente na onda do orçamento paralelo,
parte dos recursos teve como destino empresas que pertencem ou estão
intimamente ligadas a políticos, além de ter irrigado o caixa de
prefeituras comandadas por cabos eleitorais dos deputados e senadores.
Como o leitor verá a seguir, recursos enviados para a base eleitoral do
líder do governo no Senado, Fernando Bezerra Coelho, por exemplo, foram
parar em empresas de um irmão dele e de um amigo íntimo da família.
Outra parte da fortuna federal distribuída a aliados teve como destino a
concessionária de um prefeito amigo do presidente Jair Bolsonaro – os
recursos que chegaram à empresa haviam sido destinados por
correligionários do prefeito. No interior de Goiás, uma cidade minúscula
agraciada por um senador do Acre (sim, do Acre!) com 20 milhões de
reais – dos quais 14 milhões já constam como pagos – desconhece a
chegada do dinheiro. Em outra frente, milhões de reais foram repassados
pela Codevasf, sob a assinatura de um conhecido operador do
Progressistas, a uma consultoria cujo dono aparece metido nos desvios de
dinheiro do governo de Sérgio Cabral, no Rio de Janeiro. Eis os
detalhes:
O quintal dos Bezerra
Dos
3 bilhões do orçamento paralelo que foram para o Ministério do
Desenvolvimento Regional, 459 milhões tiveram a Codevasf como destino.
E, desse valor, nada menos que 125 milhões seguiram para o caixa da
companhia por indicação do senador Fernando Bezerra Coelho, do MDB,
aliado de primeiríssima hora do presidente Jair Bolsonaro, a ponto de
ter sido escolhido por ele como líder do governo no Senado apesar de
responder a várias investigações federais por suspeita de desvio de
verba. Fernando Bezerra, que também já foi ministro de Dilma Rousseff,
tem a Codevasf como um de seus principais feudos. A superintendência da
companhia em Petrolina, cidade pernambucana dominada politicamente há
décadas pela família do senador, tem no comando um ex-assessor dele,
Aurivalter Cordeiro. Foi justamente para lá que Fernando Bezerra
destinou uma parcela da verba com a qual foi “contemplado” pelo Palácio
do Planalto.
Como
o mundo é pequeno, o dinheiro foi parar no círculo íntimo do senador.
Do ano passado para cá, pelo menos 10 milhões de reais foram usados para
comprar máquinas e caminhões em uma concessionária local chamada HGV
Veículos. O dono da empresa, Hugo Bezerra Gurgel Neto, é amigo do peito
de um dos filhos do senador, o deputado estadual Antônio Coelho. Desde
novembro, 19 contratos já foram fechados pela Codevasf com a HGV.
Procurado, o empresário admitiu a existência dos negócios com a
companhia, mas ao ser indagado sobre como conseguiu os contratos
desligou o telefone e não atendeu mais. Há relações comerciais com mais
gente próxima da família do líder do governo. Sem licitação, a companhia
comprou por 205 mil reais uma van da empresa Mavel Máquinas e Veículos,
que tem como sócio Caio Bezerra de Souza Coelho, irmão do senador. Os
dados registrados nos sistemas da Codevasf, aos quais Crusoé teve
acesso, mostram que o veículo foi pago com recursos destinados pelo
próprio Fernando Bezerra Coelho.
Outra
pessoa próxima da família que tem conseguido fechar contratos com a
Codevasf é Marco Antonio Coelho Carvalho, procurador da prefeitura de
Juazeiro, cidade vizinha a Petrolina que também é historicamente
dominada pelo clã. A Tratormaster Tratores, Máquinas, Peças e Serviços,
da qual Marco Antonio é sócio, recebeu 1,5 milhão vendendo
retroescavadeiras para a Codevasf, também sem licitação. Há, ainda,
outra empresa ligada à família do líder do governo que recebeu uma
pequena fortuna a partir dos recursos do orçamento paralelo – nesse
caso, não pela venda de máquinas, mas por serviços de pavimentação. A
Liga Engenharia, cujo dono é cunhado de um sobrinho do senador, recebeu
pelo menos 28 milhões nos últimos seis meses da Codevasf e do DNOCS, o
Departamento Nacional de Obras contra a Seca, que igualmente levou um
pedaço importante da bolada.
O ‘amigo’ do presidente
O
multimilionário Vittorio Medioli, prefeito da cidade mineira de Betim
pelo PSD, fez questão de ir a Brasília cumprimentar o “amigo” Jair
Bolsonaro logo depois de sua eleição, em 2018. “Encontros como esse são
importantes para contribuir para o crescimento do Brasil e de Betim”,
escreveu Medioli nas redes sociais, debaixo de uma foto descontraída ao
lado de Bolsonaro. Desde a liberação dos recursos do orçamento paralelo,
a Deva Veículos, uma das várias empresas de propriedade do prefeito,
tem fechado seguidos contratos com a Codevasf que já somam 64 milhões de
reais. O mecanismo funciona de maneira semelhante aos casos de Fernando
Bezerra: parlamentares aliados do governo mandam o dinheiro para a
companhia e definem o bem ou serviço que deve ser pago com ele. Somente o
senador Carlos Viana, do PSD, mesmo partido de Vittorio Medioli,
destinou 32 milhões de reais ao braço mineiro da Codevasf a partir do
orçamento paralelo. Uma parte desse valor já se transformou em compras
na empresa do prefeito. Em 12 de março deste ano, a Codevasf adquiriu 32
caminhões coletores de lixo junto à Deva. Cada unidade saiu por 294,5
mil reais (ao todo, foram gastos 9,4 milhões). Há indícios de que o
valor pago está acima do preço normal — em dezembro do ano passado, a
mesma Deva vendeu um caminhão semelhante, e com potência até maior, por
30 mil reais a menos.
Há
mais negócios envolvendo a família Medioli. Dois sobrinhos do prefeito
de Betim aparecem como donos da LLM Locação de Veículos, que recebeu
633,5 mil da Codevasf. A firma faz parte do conglomerado do qual o
prefeito é proprietário. O dinheiro repassado à LLM saiu de dois
repasses feitos à companhia a pedido do senador goiano Vanderlan
Cardoso, que também é do PSD. Procurada, a prefeitura de Betim afirmou,
curiosamente, que não pode responder por assuntos privados de Medioli.
Já a Deva Veículos e a LLM Locação de Veículos disseram que todas as
transações com a Codevasf se deram “dentro das normas da legislação
vigente”. Em resposta conjunta, as empresas disseram que não tinham
conhecimento da origem dos recursos e que tiveram “margem de lucro
inferior a 5%”. Crusoé indagou se Medioli tratou pessoalmente dos
contratos com a Codevasf e se em algum momento ele conversou sobre o
assunto com o “amigo” Bolsonaro, mas não houve resposta para essas
perguntas. Ao todo, a Deva venceu cinco concorrências para a venda de
245 caminhões e tratores para Codevasf. Até agora, segundo a própria
empresa, 15 foram entregues.
O operador de Ciro e as ‘consultorias’
Davidson
Tolentino é um conhecido operador do Progressistas, novo nome do antigo
PP, o partido que é esteio do Centrão. Sempre que a legenda consegue do
presidente de turno aval para aboletar seus homens em ministérios ou
estatais, Tolentino está de prontidão, não importa a área. Já ocupou
posições importantes em órgãos tão díspares quanto a CBTU, a estatal
federal de trens urbanos, e o Ministério da Saúde, quando a pasta era
comandada por Ricardo Barros, no governo de Michel Temer. Quase sempre, é
colocado bem próximo dos departamentos que envolvem contratos e verbas.
Tolentino é homem de Ciro Nogueira, o presidente do partido, e seu nome
já esteve muitas vezes atrelado a suspeitas de cobrança de propina. No
Ministério da Saúde, como publicou Crusoé ainda em 2018, ele foi
apontado como o responsável por procurar, em nome do PP, empresários que
tinham faturas a receber na pasta. Segundo Tolentino, se quisessem
receber, os empresários teriam de fazer um “alinhamento financeiro” com o
partido. Uma clara figura de linguagem para não ter que pronunciar a
palavra “propina”.
Pouco antes, o mesmo Davidson Tolentino havia aparecido como personagem central de um depoimento prestado à Operação Lava Jato por um ex-assessor de Ciro Nogueira. À Polícia Federal, o ex-assessor contou que ele e Tolentino eram responsáveis por recolher e armazenar em um apartamento no Itaim Bibi, em São Paulo, volumes de dinheiro em espécie cujo destinatário era o senador. Ele afirmou que, a certa altura, chegou a haver no bunker uma quantia estimada em 5 milhões de reais. Após tamanha exposição, Tolentino submergiu. Voltou à cena em julho do ano passado, quando foi nomeado para o pomposo cargo de diretor de revitalização da Codevasf, que virou um tamborete para distribuir verbas federais a aliados do governo. Na mesma toada da “revitalização” da companhia, o operador de Ciro e do Centrão passou a assinar polpudos contratos com dinheiro proveniente do orçamento paralelo, muitos deles de consultoria – só para esse tipo de serviço, a Codevasf tem hoje contratos ativos da ordem de 40 milhões de reais. Um desses contratos foi assinado por Tolentino em 28 de janeiro deste ano com a Agrar Consultoria e Estudos Técnicos. O valor: 11 milhões de reais.
A
Agrar tem como sócio Pedro Luiz Aleixo Lustosa de Andrade, denunciado
pelo Ministério Público Federal por participar do esquema de desvio de
dinheiro público no governo de Sérgio Cabral, no Rio de Janeiro. Segundo
os procuradores, Pedro Lustosa integrava uma organização criminosa que
fraudou licitações e formou cartel na reforma do Maracanã e no PAC das
favelas – à época, ele era executivo da Metrópolis Projetos Urbanos. A
Crusoé, o consultor negou haver qualquer irregularidade no contrato
fechado com a Codevasf e disse ter “zero relação política” com Ciro
Nogueira e com Davidson Tolentino. “Quem está cuidando desse contrato é
meu sócio. Eu não sou a pessoa mais adequada para responder”, afirmou. O
contrato é destinado à prestação de consultoria ambiental para
empreendimentos da Codevasf.
Cadê o dinheiro?
Gameleira
de Goiás é uma típica cidadezinha de interior. Com 3,8 mil habitantes,
está localizada a pouco mais de 200 quilômetros de Brasília, mas parece
perdida no tempo e no espaço. A pequena sede do município se esparrama
ao longo de uma única avenida, ao redor da qual se concentram pequenas
casas térreas e o modesto comércio local. A cidade tem uma única escola.
Em 8 de dezembro do ano passado, Gameleira foi indicada como destino de
nada menos que 20 milhões de reais. Dinheiro do orçamento paralelo do
Ministério do Desenvolvimento Regional. Curiosamente, quem fez a
indicação foi Márcio Bittar, um senador do MDB do Acre que, à primeira
vista, não tem relação nenhuma com o município. Bittar é da cozinha do
Planalto e goza de ótima relação com o presidente da República. No
Congresso, ele tem ocupado postos-chave. Foi relator da chamada PEC
emergencial e, mais recentemente, da proposta orçamentária para este ano
– o que significa que, em 2021, será ele o responsável por coordenar o
destino das gordas “emendas de relator”, estimadas em 18 bilhões de
reais.
Dos
recursos remetidos a Gameleira de Goiás que aparece na planilha secreta
do Planalto, equivalente a 13 vezes a arrecadação anual de impostos do
município, mais da metade já consta no sistema oficial do governo
federal como paga. Só que, na prática, não há qualquer sinal de
benfeitoria na cidade com esses recursos. Nesta semana, foi até
Gameleira à procura de uma resposta para o mistério. No papel, embora
seja suficiente para reformar a cidade inteira, o dinheiro deveria ser
gasto com asfaltamento e recapeamento de ruas. Só que, até hoje, não há
qualquer obra na cidade. No departamento de licitações da prefeitura, um
dos dois funcionários que davam expediente na tarde de quarta-feira,
13, disse nunca nem ter ouvido falar do repasse. “São 20 milhões? É
dinheiro que não acaba mais. Daria para revolucionar (a cidade)”,
surpreendeu-se.
Os
moradores dizem nem lembrar da última vez que foi feita uma obra em
Gameleira. O prefeito, Wilson Tavares, do Democratas, disse não conhecer
o senador Márcio Bittar, mas demonstrou estar ciente da transferência
de recursos. “A gente não fica sabendo. Como é uma emenda
extraorçamentária, eu não sei quem colocou pra mim”, disse. À diferença
do que mostram os sistemas oficiais, o prefeito afirma que não recebeu
até hoje nenhum repasse. Indagado se 20 milhões de reais não seria um
valor alto demais para gastar com asfaltamento e recapeamento de ruas da
minúscula cidade, o prefeito se apressou em dizer que tem mais planos
para a cifra. “Eu preciso fazer calçada, reformar praças, preciso fazer
um estádio, ponte”, afirmou. tentou falar com o senador Márcio Bittar.
Ele até respondeu a uma primeira mensagem, mas depois de perguntar e ser
informado sobre qual era o assunto , sumiu.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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