Talvez essa percepção da desonestidade como um fardo o ajude a pensar que o castigo do corrupto está na própria corrupção que o escravizará até a morte. Paulo Polzonoff via Gazeta do Povo:
Quem
recebe minha newsletter sabe: tive a ideia para a crônica “Entidade
processa Flávio Bolsonaro por chamar Renan Calheiros de ‘vagabundo’” por
volta das 5h da manhã, depois de ouvir um mendigo gritar “vagabundo”
para alguém. Acordei e fiquei degustando a palavra. Primeiro, a forma:
como a boca morde o lábio inferior antes de se abrir num “a” raivoso,
recorre ao “g” na garganta e explode num “bum” indignado, seguido por um
“do” que é quase o som de um corpo caindo no chão.
Depois,
porém, comecei a dar à palavra um significado. E, para minha surpresa,
descobri que era difícil. “Vagabundo” é palavra de uso tão rotineiro
quanto vago. O Carlitos de Chaplin, por exemplo, é um vagabundo, assim
como eram os beatniks e como são a bandidagem, digamos, menos romântica.
Pergunto: em que momento a vagabundagem deixa de ter essa conotação de
preguiça inofensiva e passa a significar um ato hostil?
Uma
coisa leva a outra e, quando percebi, estava me demorando no banho, à
procura de uma boa definição para esse tipo específico de vagabundo
político a que damos o nome de “corrupto”. O corrupto é alguém que se
aproveita do esforço alheio na esperança de garantir para si um futuro
de sombra e água fresca. É, portanto, uma pessoa que investe no caminho
mais fácil e preguiçoso para alcançar um objetivo de facilidades e
preguiça.
E
ele faz isso por meio de ardis, artimanhas, blefes, cambalachos,
conluios, embustes, falcatruas, farsas, fraudes, golpes, intrigas,
logros, manobras, maquinações, maracutaias, mentiras, mutretas,
patifarias, perfídias, raposices, subterfúgios, tramoias, trapaças,
truques e velhacarias. Ufa. Cansa, né? Imagine, portanto, viver essa
vida supostamente fácil que é também uma aposta no erro em troca de
dinheiro e das muitas coisas supérfluas que ele é capaz de comprar.
A dúvida que afronta
E,
no entanto, ao vermos a imagem de um corrupto que sabemos contumaz, mas
que está à solta por aí, talvez até relatando uma comissão parlamentar
de inquérito, é como se ele esfregasse em nossa cara a mentira pela qual
vive – isto é, a de que a esperteza vale a pena – como se fosse uma
verdade.
Essa
é a afronta que gera indignação e que leva multidões às ruas. É como se
o corrupto me perguntasse cinicamente por que opto por uma vida dura de
honestidade e sacrifícios, quando bem poderia vender dois ou três
princípios e viver no bem-bom. A corrupção tem esse lado que eu
considero surpreendentemente bom: ela faz com que nos sujeitemos, nem
que seja em imaginação, à tentação dos prazeres frágeis da vida material
– e a rejeitemos.
O
lado ruim é que o corrupto, todo paramentado na impunidade, nos deixa
com um verdadeiro pulgueiro atrás da orelha. É nessa dúvida quanto às
nossas escolhas moral, intelectual e materialmente honestas que reside o
grande dano espiritual da corrupção. Os de fé menos sólida nos próprios
princípios podem titubear e ceder à inveja. Os outros, à raiva que, até
aqui, tem se mostrado ineficaz e contraproducente.
A corrupção como fardo do corrupto
Pense,
por exemplo, no seu corrupto de preferência, tenha ele dez ou nove
dedos. Você realmente acredita que existe alguma possibilidade de ele se
deitar à noite sem temer, nem que seja um pouquinho, que de alguma
forma o desmascarem no dia seguinte? E no próximo e no próximo e no
próximo? Sem imaginar a vergonha da família e dos amigos, aquela troca
de olhares e os sussurros de “aí vem o bandido”? Sem aventar a hipótese,
por mais improvável que seja, de passar uma noite na cadeia?
O
que diferencia o vagabundo do homem honesto, pois, não é a esperteza de
um e a parvalhice do outro. Porque o homem honesto também é esperto e
também ambiciosa, mas o objeto de sua ambição não tem nada a ver com
mansões, carros, conta na Suíça, teúdas & manteúdas e aspones
especialistas na arte do puxassaquismo. A ambição do homem honesto é a
vida digna e, quem sabe, se tornar depois de morto uma lembrança
daquelas que se evoca entre suspiros, aiais e conclusões do tipo “Ah,
como ele faz falta!”.
Não
quero, com isso, dizer para você abdicar da sua revolta ou da
necessidade de ver os corruptos/vagabundos punidos. Cada um na sua, mas
com alguma coisa em comum, como já aconselhava uma velha propaganda de
cigarro. Mas talvez essa percepção da desonestidade como um fardo o
ajude a pensar que o castigo do corrupto está na própria corrupção que o
escravizará até a morte.
E
que a recompensa para a honestidade está na cotidiana sensação do dever
cumprido e em saber que não há nenhum perigo de você ser acordado às 6h
da manhã ao som da bateria da Unidos da Polícia Federal.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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