Não pode haver Estado de Direito e economia de mercado para valer com esse STF que é o maior exterminador de confiança dos últimos tempos. Ubiratan Jorge Iorio para a nova edição da revista Oeste:
“O juiz não é nomeado para fazer favores com a justiça, mas para julgar segundo as leis.”
Platão
Tinha
razão Nelson Rodrigues ao dizer que até para atravessar uma rua e
chupar um picolé do outro lado é preciso ter confiança, conhecer o
terreno em que se está pisando com incerteza mínima e segurança máxima
possível. Pois a virtude da confiança, inspirada, entre outros
atributos, pela segurança jurídica, é também uma das exigências da vida
em sociedade, já que sua ausência destrói amizades, namoros e
casamentos, impede trocas voluntárias, acordos e acertos e prejudica as
atividades econômicas mais simples, como vender, comprar, emprestar,
empregar, poupar, investir etc.
Um
dos motes empregados a três por dois como espécie de declaração de boas
intenções é o pomposo Estado Democrático de Direito, locução empolada e
imponente e que é replicada aqui e ali, lá e acolá e — para combinar
com sua “pose” — algures e alhures. É quase uma palavra de ordem, uma
senha recitada para ganhar admiração, curiosamente utilizada na maioria
das vezes por pessoas cujos próprios atos revelam pouco apreço pela lei e
pela democracia. Os instrumentos legais e o sistema democrático
pressupõem, afinal, a existência de segurança jurídica, uma qualidade
que se assenta em três colunas: a da previsibilidade e qualidade das
normas; a da certeza de sua aplicação; e a da baixa incidência de ações
judiciais, um trio que não se encontra — para insistir na linguagem
afetada — nenhures, ou seja, em nenhum lugar do Brasil.
No
ano de 2020, em um total de 128 países, ocupamos a 67ª posição no
ranking mundial de segurança jurídica, segundo o World Justice Project
Rule of Law Index, a principal referência mundial de fontes originais e
independentes que pesquisam o chamado Estado de Direito. O índice é
elaborado a partir de pesquisas nacionais com mais de 130.000 famílias e
4.000 profissionais e especialistas jurídicos. Embora ocupemos uma
classificação intermediária, um pouco acima da primeira metade do total
de países (52% de 128), nem por isso devemos descuidar das preocupações.
Primeiro, porque pioramos em relação ao ano anterior, quando ocupávamos
a 58ª posição. Segundo, com certeza quase absoluta, a situação tenderá a
se agravar em 2021.
Trata-se
de um problema crônico em nosso país, com raízes históricas fincadas em
um Estado que já desembarcou em Cabrália estabelecendo regras
arbitrárias e beneficiando grupos específicos, em detrimento do bem
comum. São tradicionais entre nós as incertezas quanto à aplicação de
cipoais cada vez mais complicados e inextricáveis de leis e
regulamentações, mutações constantes no labirinto de normas sobre
tributação, tarifas sobre comércio exterior e relações de trabalho. Isso
sem falar em cinco processos de impeachment abertos contra presidentes
da República desde 1945 (Getúlio Vargas, Carlos Luz, Café Filho,
Fernando Collor de Mello e aquela senhora estocadora do ar em
movimento), em uma revolução (1930), um golpe (1937), um contragolpe
(1964), um namoro curto com o parlamentarismo (de 1961 a 1963) e nas
várias mudanças de moeda e “pacotes econômicos” — entre os quais cinco
crimes fatais contra a ordem econômica, os congelamentos de preços
cometidos entre 1986 e 1991.
Ora,
segurança jurídica é a antítese desse quadro, é estabilidade política, é
critério nas regras do jogo e nas relações judiciais, é ausência de
mudanças arbitrárias em leis, normas e regulamentos e é uniformidade em
sua interpretação. Não foi por outra razão que o ex-ministro da Fazenda
tucano Pedro Malan disse que no Brasil até o passado é imprevisível, um
oximoro bem a propósito.
Os
efeitos da multipolaridade jurídica sobre as atividades econômicas são
desastrosos, mas a nuvem de incertezas que produz não turva apenas a
economia, porque se estende à aplicação das leis penais, à segurança
física dos cidadãos e às suas próprias vidas. É desalentador escrever
isto, mas no Brasil não existe império da lei, se a entendermos como um
conjunto de normas gerais de justa conduta, claras, simples, válidas
para todos, de ladrões de quintal a ex-presidentes e ministros
corruptos. Regras estáveis e prospectivas certamente não surgem a partir
de quimeras como as embutidas na Constituição Federal de 1988. Nascem
de valores, usos, costumes e tradições aceitos pela população. Demarcam
deveres e direitos. Estimulam o trabalho em vez de onerá-lo.
Desestimulam o crime, em vez de abrir-lhe convidativamente portões,
pórticos, portas e pernas e até imputá-lo às vítimas.
Nas
atividades econômicas, a segurança jurídica é um requisito imperioso,
que não garante o sucesso nem assegura a prosperidade, mas cuja falta
certamente estorva o empreendedorismo e, portanto, o progresso. Quem
contrata um novo funcionário, se a legislação trabalhista pode ser
alterada ou interpretada de acordo com os humores de diferentes juízes?
Ou compra um imóvel, caso o contrato de compra e venda seja sujeito a
mudanças? Ou cria uma empresa importadora, na presença de dúvidas quanto
a mudanças futuras na política comercial ou cambial? Ou, ainda, quem se
atreve a abrir um estabelecimento comercial perto de uma área dominada
pelo tráfico, sabendo que a polícia está sendo impedida de atuar contra
os traficantes “donos da área”?
Resumindo,
podemos evocar o sábio aviso de São Paulo aos coríntios (1º Cor.
14:18), de que quando só saem sons confusos da trombeta — e a sonoridade
da trombeta da Justiça em nosso país tem sido uma algazarra
insuportável! — nenhum soldado se apresenta para o combate, tratando de
seguir a Lei de Murici e cuidar apenas de si.
É
óbvio que para a economia funcionar bem, o empreendedorismo florescer e
gerar prosperidade e as decisões relevantes para o crescimento
econômico — que são as de longo prazo — serem incentivadas, é preciso
que o Estado cumpra o seu papel de zelar pela segurança jurídica,
provendo um mínimo de tranquilidade para que os atores da economia
busquem seus objetivos escolhendo os meios naturais existentes. Em
outras palavras, a segurança jurídica contribui para reduzir incertezas e
riscos que travam o ambiente de negócios e dá suporte a decisões
econômicas simples, como o que consumir, quanto investir, o que vender.
Portanto, é condição necessária para a existência da economia de
mercado, que é a única estrada para o progresso conhecida até hoje.
As
dificuldades de interpretar normas confusas, de adequar-se a regras
complicadas e escapar de imprevistos desagradáveis são tantas e tamanhas
que obrigam muitas empresas a manter setores jurídicos pesados, com
muitos advogados, ou a incorrer em custos de terceirização. Isso implica
perda de competitividade, que se incorpora a um dos conhecidos e
aparentemente eternos inimigos do nosso futuro, o Custo Brasil.
Que
tal um exemplo, extraído de uma assustadora golfada de semelhantes, de
como a insegurança jurídica impõe prejuízos à atividade econômica? Em
março passado, a famosa rede de churrascarias Fogo de Chão foi obrigada
pela Justiça a reintegrar funcionários que demitira em 2020, em
consequência do impacto brutal da pandemia. Pois não é que, além do
absurdo de obrigar a empresa a readmiti-los, que equivale a um estranho
meter-se a dar ordens em casa alheia, a Justiça do Trabalho estabeleceu
multa de R$ 17 milhões para a empresa, por “danos morais coletivos”? A
decisão confirmava a liminar obtida pelo Ministério Público do Trabalho
do Rio de Janeiro em junho do ano passado, que determinara a
reintegração dos funcionários. E, para completar, a sentença determinava
ainda uma multa diária de R$ 10 mil por trabalhador, caso a empresa
descumprisse as obrigações impostas pela interpretação de uma legislação
sabidamente confusa.
A
liminar de maio de 2020 baseou-se no argumento de que houve demissão em
massa sem justa causa, sem pagamento de verbas rescisórias, ou apenas
com o pagamento de parte delas para alguns empregados e, ainda, que não
houve negociação com o sindicato da categoria, o que, para as leis
trabalhistas, é irregular, pela grande quantidade de demitidos. Na nova
decisão judicial, lê-se uma pérola como as que só o conceito de “justiça
do trabalho”, derivado de Mussolini, pode produzir: “Considerando-se
que as dispensas coletivas superam o âmbito individual de um
trabalhador, atingindo uma coletividade de empregados que, junto com
suas famílias, perdem sua fonte de sobrevivência, estamos falando, sim,
de um ato coletivo, inerente ao direito coletivo do trabalho e não
apenas do direito individual do trabalho”.
Cabem,
en passant, dois comentários: o primeiro é de puro respeito ao nosso
idioma, pois o “sim” da sentença é redundante (embora tolerável), além
do laivo senhorial; e o segundo, como tenta ensinar incansavelmente há
séculos o liberalismo clássico, é que só faz sentido falar em direitos
individuais e não em “direitos coletivos”. Como dizia um velho liberal,
ônibus, metrô e trem, que são os “coletivos” mais conhecidos, não
possuem direitos nem obrigações, que são atributos exclusivos de seus
motoristas e usuários.
É
evidente que a provisão de segurança jurídica é obrigação dos três
Poderes: o Legislativo precisa elaborar leis claras e sem brechas para
interpretações que deem margem a filigranas jurídicas e dribles à lei,
tão a gosto de alguns operadores do Direito; o Executivo deve cumprir as
leis e respeitar os direitos e deveres de indivíduos e empresas; e o
Judiciário deve abster-se de decisões movidas por ideologias políticas,
respeitar a Constituição, ser ágil nos julgamentos e evitar a qualquer
custo mudanças inesperadas de jurisprudência. E — nunca é demais dizer —
os três Poderes devem ser independentes. Alô, alô, responda, responda
com toda a sinceridade: alguma dessas exigências rudimentares está sendo
cumprida no Brasil?
Há
diversos focos de insegurança jurídica no Brasil: os estruturais, como a
quantidade absurda e de complexidade estonteante de leis, normas e
regulamentos e a incerteza quanto ao andamento das reformas estruturais —
a administrativa, a tributária e as privatizações; os conjunturais,
como as dúvidas quanto aos desdobramentos da pandemia sobre a economia e
a saúde, o abre e fecha protagonizado por certos governadores e
prefeitos, a soltura de criminosos contumazes e a proibição de operações
policiais contra o tráfico. Porém, sem dúvida, o maior exterminador de
confiança nos últimos tempos tem sido o espetáculo de ativismo jurídico
encenado no teatro da Corte Constitucional. O Tribunal exibe um concerto
executado por músicos sem talento, em sucessivos movimentos de invasão
às atribuições dos outros Poderes, de decisões arbitrárias sobre
assuntos inteiramente fora de seu conhecimento e competência, todos em
crescendo e com andamento prestíssimo. A apresentação avança diante de
uma plateia estupefata, a ponto de vários juristas ilustres e
respeitados a classificarem como desrespeito à Constituição Federal.
Algo que, em definitivo, é absolutamente inaceitável.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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