Será que foram tomadas medidas exageradas, com consequências devastadoras, baseadas em pressupostos errados? Como permitimos que tal acontecesse sem nunca haver o devido escrutínio? Miguel Menezes e Tiago Mendes para o Observador:
Quão
provável é a transmissão assintomática do vírus SARS-Cov2? E quão
relevante é essa possibilidade, hoje e no futuro próximo? Estas duas
questões são absolutamente essenciais e por isso é necessário
resgatá-las para um debate alargado e plural.
A
potencial transmissibilidade do SARS-CoV-2 através de indivíduos
assintomáticos tornou-se um dos pilares dos planos de “combate” à crise
sanitária do último ano e desde aí pouco ou nada se discutiu. Foi com
base nesta premissa que se geraram esforços muitíssimo dispendiosos no
encalce dos assintomáticos, acreditando que eles constituíam um motor de
propagação da pandemia relevante o suficiente que justificasse o custo
brutal imposto à sociedade – não apenas direto, mas indireto também, em
consequência das políticas adoptadas.
Neste
artigo faremos uma revisão dos acontecimentos e dos principais artigos
científicos que se debruçaram sobre esta questão, absolutamente central
no desenrolar da putativa pandemia.
1 Como surgiu a crença de que os assintomáticos são agentes de transmissão?
Historicamente,
o papel dos assintomáticos na transmissão de infeções respiratórias foi
sempre relativizado. A ideia consensual sempre foi a de que a
transmissão assintomática seria muito mais rara e menos importante do
que a que ocorre nas pessoas com sintomas.
Anthony
Fauci, diretor do National Institute of Allergy and Infectious Diseases
norte-americano e um dos principais membros da equipa da Casa Branca
destacada para a COVID-19, afirmou a 28 de janeiro de 2020: [2]
“O
que as pessoas precisam perceber é que, em toda a história de vírus
respiratórios de qualquer tipo, mesmo que haja alguma transmissão
assintomática, esta nunca foi a propulsora de surtos. Os surtos são
sempre essencialmente dependentes do contágio em pessoas sintomáticas.
Mesmo que haja um raro evento de transmissão por uma pessoa
assintomática, uma epidemia não é causada por nem evolui com base em
portadores assintomáticos.”
Dois dias após a declaração de Fauci (a 30 de Janeiro de 2020), surgiu uma carta
dirigida aos editores e publicada no New England Journal of Medicine
(NEJM) com um caso de uma transmissão por um indivíduo assintomático.
O polémico Fauci, que tem sido muito criticado por alegados conflitos de interesse com a Indústria Farmacêutica, reformulou subitamente toda a sua posição anterior, afirmando: [4]
“Não
há dúvidas, depois de ler a carta [do NEJM], de que a transmissão
assintomática é uma possibilidade (…). Isto esclarece a questão.”
Esta
posição de Fauci, aparentemente definitiva, daquele que é denominado
frequentemente como “o maior especialista em doenças infeciosas dos
Estados Unidos”, atraiu enorme atenção mediática. No entanto, o citado estudo apresenta irregularidades irreparáveis.
O estudo foi baseado no suposto contágio a partir de uma mulher de negócios chinesa numa visita à Alemanha. Na carta, os autores do estudo referiam:
“Durante a sua estadia, ela estava bem, sem sinais ou sintomas de infeção, mas adoeceu no voo de volta para a China.”
Essa informação revelou-se falsa.
A
cidadã chinesa apresentava realmente sintomas durante a sua estadia na
Alemanha, quando entrou em contacto com o alemão que adoeceu, como relatado
pela revista Science, poucos dias após a publicação da carta. O
Instituto Robert Koch (RKI), a agência de saúde pública do governo
alemão, em conjunto com a Autoridade de Saúde e Segurança Alimentar do
estado da Baviera contactaram a mulher chinesa somente após a publicação
do NEJM.
Na
Alemanha não foi realizado qualquer teste para confirmar a eventual
infeção com o vírus. A cidadã foi testada para o SARS-CoV-2 apenas na
China, logo após o seu retorno da Alemanha, tendo sido obtido um
resultado positivo.
Os investigadores não chegaram sequer a interagir com a mulher antes da publicação do artigo.
Um
dos autores, Michael Hoelscher, do Centro Médico da Universidade Ludwig
Maximilian de Munique, afirmou que o documento se baseou em informações
de outros quatro pacientes:
“Disseram-nos que a paciente da China não aparentava qualquer sintoma.”
O
virologista Christian Drosten, do Charité University Hospital em
Berlim, que fez o trabalho de laboratório para o estudo (do qual é um
dos autores), disse à Science:
“Sinto-me
mal com o que aconteceu, mas acho que ninguém foi culpado.” (…)
“Aparentemente, a mulher não pôde ser contactada num período inicial e
considerou-se que se tratava de algo que deveria ser comunicado
rapidamente.”
(Nota:
Christian Drosten tem estado envolto em polémica, por vários motivos,
em relação a toda a questão da COVID-19. Um dos motivos é por ter sido
ele a criar o protocolo, muito contestado pela comunidade científica, do teste RT-PCR para a COVID-19.)
Causa
estranheza a publicação de uma carta tão fracamente fundamentada numa
revista científica conceituada, e sobretudo as repercussões que teve ao
gerar peso mediático suficiente para que a transmissibilidade dos
assintomáticos viesse a ocupar um papel chave no corpo conceptual
relativo à COVID-19.
O
retratamento dos autores da carta não chegou para que Fauci voltasse a
alterar a sua posição relativamente à questão dos assintomáticos.
A
crença de que os assintomáticos constituíam grave perigo difundiu-se e
avolumou-se, pelo que as declarações de Maria Van Kerkhove, chefe da
unidade de doenças emergentes da Organização Mundial de Saúde (OMS), a 8
de Junho de 2020, caíram como uma bomba ao referir que as transmissões por assintomáticos eram “muito raras”:
“Possuímos
muitos relatórios de países que estão a fazer rastreamentos muito
detalhados dos contactos com casos assintomáticos, não encontrando
transmissões secundárias. Trata-se de algo raro e que ainda não foi
publicado na literatura”.
As declarações foram divulgadas por toda a comunicação social a nível mundial e provocaram fortes reações.
De um lado, reações de perplexidade, dadas as medidas adotadas com base
nesse pressuposto; de outro lado, reações críticas. Fauci foi um dos críticos.
Van Kerkhove apressou-se a fazer nova intervenção,
logo no dia seguinte, dando a ideia de algum recuo ou retratação em
relação ao que havia proferido. Referiu que a sua afirmação sobre a
transmissão entre assintomáticos ser bastante rara baseava-se nalguns
estudos e rastreamentos feitos por vários países, mas que tal seria
insuficiente para poder afirmá-lo peremptoriamente, porque os modelos
informáticos estimaram cerca de 40% de transmissões entre
assintomáticos.
Esta
intervenção informou-nos de algo fundamental: os estudos no terreno
dizem que as transmissões de assintomáticos são “bastante raras”, mas os
modelos informáticos, que não são reais e dependem daquilo que neles é
inserido, dizem que são significativas (40%).
2 O que dizem os estudos científicos?
São
escassos os estudos que sugerem que os assintomáticos têm algum impacto
na transmissão, tendo além disso, merecido críticas (algumas
reconhecidas pelos próprios autores).
1) Falta de qualidade geral de revisões sistemáticas. Por exemplo, grande heterogeneidade dos estudos.
1) Estudo proveniente da China, pouco replicável noutros pontos. Muito controlo no que é publicado naquele país.
2) Muita dependência de testes PCR e dos protocolos usados (por exemplo, ciclos limite). Produzem número significativo de Falsos Positivos quando a amostra é grande.
3) Grande dependência de modelos matemáticos e das suas pressuposições.
4) Retrospetivo e, por isso, baseado em relatos pessoais, dependentes da memória, e como tal, menos fiáveis.
1) Estudo proveniente da China, com os problemas daí resultantes já referidos.
Efeito Moderado na Transmissão:
Um estudo sugeriu um impacto menor, mas ainda estatisticamente significativo. No entanto, também se trata de um estudo retrospectivo.
Efeito Reduzido ou Nulo na Transmissão:
Vários estudos (aqui, aqui, aqui, aqui e aqui)
concluíram que a transmissão entre assintomáticos era muito reduzida ou
até mesmo nula. [22] Alguns apresentam boas metodologias, mas outros
também não são isentos de algumas críticas.
Um dos estudos, [22] publicado
na Nature, escapa à maioria das críticas, por apresentar uma amostra
enorme (N = 10 milhões) e a confirmação laboratorial dos infectados.
Nesse estudo, a evidência apontou para uma transmissão assintomática
residual ou mesmo nula. Algumas outras revisões sistemáticas apontam na mesma direcção.
3 O que dizem as agências de saúde?
“Com
base no que sabemos atualmente, a transmissão de COVID-19 ocorre
principalmente em pessoas quando elas apresentam sintomas (…)”
“As
principais incertezas permanecem em relação à (…) dinâmica geral de
transmissão da pandemia, devido à evidência limitada sobre a transmissão
de casos assintomáticos.”
4 Conclusão
Os
assintomáticos nunca foram considerados decisivos em epidemias ou
pandemias, sobretudo nas que estão ligadas a doenças respiratórias.
Mesmo quando se questionou este tema, as evidências científicas
demonstraram-no. [25]
Sintomas como a tosse, espirros e corrimento nasal (isolado ou associado a espirros) parecem ser determinantes para a disseminação dos vírus. [1]
Segundo
o Dr. Pedro Ladeira, especialista em microbiologia clínica e
responsável pela área de infeciologia em algumas das maiores
multinacionais farmacêuticas de investigação durante mais de 20 anos,
não existem “assintomáticos contagiantes”, porque o seu sistema
imunitário reduz a carga viral abaixo de um limiar onde não existem
sintomas; e, se não há carga viral suficiente, não pode haver contágio
para terceiros.
A
contribuição que o relato de um caso – que não foi devidamente
confirmado – teve na mudança de um paradigma científico com décadas de
existência tem tanto de surpreendente como de preocupante. Constitui um
sério alerta para a fragilidade do edifício científico atual que tem
vindo a ficar gradualmente mais dependente de interesses económicos.
Este é também mais um dos sobejos exemplos
em como modelos informáticos, que dependem inteiramente de hipóteses
especulativas, podem falhar rotundamente, impulsionando crenças.
Torna-se inevitável terminarmos como começámos:
Será
que foram tomadas medidas exageradas, com consequências devastadoras,
baseadas em pressupostos errados? Como permitimos que tal acontecesse
sem nunca haver o devido escrutínio, discussão e revisão de ideias, à
medida que surgiam novos estudos?
É
com base na ideia da relevância da transmissibilidade por via
assintomática que se estimula o uso de máscaras, entre inúmeras outras
medidas muito provavelmente desnecessárias, desproporcionais e
infantilizadoras, que além do mais, são muito dispendiosas para os
contribuintes (testagem massiva, recursos de proteção além do necessário
e proporcional, etc.).
Urge,
por isso, debater esta crença e corrigir o que for possível – em tempo
útil. Errar é humano, mas alongar-se no erro, a poucos meses da próxima
época gripal, seria absolutamente indesculpável.
Miguel Menezes é Psicólogo Clínico e da Saúde, Investigador e tem formação em Epidemiologia e Tiago Mendes é Economista, Consultor e Professor
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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