O governo brasileiro negociou a aquisição de outras vacinas antes de sua aprovação pela Anvisa, ao contrário do que alegam defensores do governo para justificar a omissão nas tratativas com a Pfizer. Editorial da Gazeta do Povo:
Recentemente,
afirmamos neste espaço que um favor que a CPI da Covid-19 podia prestar
ao Brasil – apesar de todo o espetáculo, da politização e da presença
de elementos sem moral alguma para trabalhos de investigação – seria
esclarecer o país sobre os motivos pelos quais a vacinação, a porta de
saída da pandemia, caminha a passos lentos. Os depoimentos de Fábio
Wajngarten, ex-secretário da Comunicação da Presidência da República, e
de Carlos Murillo, gerente da Pfizer para a América Latina, ocorridos
respectivamente na quarta e na quinta-feira, ajudaram a montar uma parte
importante do quebra-cabeça.
Em
resumo, o que se pode reconstruir a partir das declarações de Murillo e
Wajngarten (já que o ex-ministro Eduardo Pazuello vem se esquivando da
CPI) é que a Pfizer procurou o governo brasileiro em agosto do ano
passado com uma proposta para a aquisição das vacinas que a farmacêutica
estava desenvolvendo em parceria com a BioNTech. Passaram-se mais de
dois meses sem resposta alguma por parte do governo, até que, em
novembro, o então secretário de Comunicação tomou conhecimento da oferta
e passou a trabalhar para que as negociações pudessem ocorrer.
No
fim, o Brasil recusou ofertas de 70 milhões de doses por discordar das
cláusulas do contrato, consideradas “leoninas e abusivas”. Apenas em
março deste ano o governo brasileiro fechou a compra de 100 milhões de
doses – era a sétima oferta da Pfizer, após as seis tentativas
anteriores terem sido descartadas. Além disso, o país acabou de fechar
mais um contrato, para o fornecimento de 100 milhões de doses
adicionais. A essa altura, no entanto, o Brasil já havia ficado para
trás na fila de prioridades, pois as nações que se anteciparam nas
negociações com o laboratório já receberam vacinas em maior quantidade.
Até agora, o país recebeu 1,6 milhão de vacinas da Pfizer – quantia que
poderia ter recebido já no fim de 2020, se tivesse aceito as primeiras
ofertas.
Parlamentares
da base de apoio a Jair Bolsonaro tentaram minimizar o efeito dos dois
depoimentos. Os senadores Marcos Rogério (DEM-RO) e Luiz Carlos Heinze
(PP-RS), por exemplo, alegaram que o Brasil não poderia ter comprado as
vacinas sem que antes elas tivessem aprovação da Anvisa, e que mesmo o
FDA norte-americano só liberou o uso da vacina da Pfizer na primeira
quinzena de dezembro, argumento rapidamente replicado por apoiadores do
presidente. No entanto, meramente do ponto de vista teórico, o
raciocínio já não faz sentido, pois era perfeitamente possível negociar a
aquisição das doses antes que seu uso fosse aprovado pela Anvisa – isso
teria colocado o país no início da fila das entregas, pois haveria
vacinas disponíveis assim que viesse a aprovação. Foi o que fizeram
vários outros países, que formalizaram intenções de compra com a Pfizer e
vários outros laboratórios antes mesmo que eles solicitassem a
aprovação das respectivas autoridades sanitárias.
Mesmo
a prática brasileira desmente o argumento dos senadores. A Anvisa
liberou o uso emergencial das vacinas Coronavac e Oxford/AstraZeneca em
17 de janeiro. Mas, na semana anterior, o governo federal já tinha tudo
pronto para enviar um avião à Índia para que buscasse 2 milhões de doses
produzidas no país asiático, o que jamais seria possível se não tivesse
havido um contrato de compra – assinado, portanto, antes que a Anvisa
aprovasse a vacina. Também antes de 17 de janeiro, o Ministério da Saúde
já havia solicitado ao Instituto Butantan a entrega “imediata” de 6
milhões de doses da Coronavac. E, em fevereiro deste ano, o Ministério
da Saúde fechou a aquisição de 20 milhões de doses do imunizante indiano
Covaxin – que até hoje não tem a aprovação da Anvisa.
Em
entrevista após o depoimento de Murillo, Marcos Rogério acabou se
contradizendo ao ser lembrado que o Brasil havia fechado – e continua
fechando – contratos de aquisição de vacinas antes de sua aprovação pela
Anvisa, pois respondeu que nos outros casos foi possível negociar
porque os termos do contrato eram melhores. Ou seja, na verdade o
impedimento não tinha relação alguma com a ausência de aval da
autoridade sanitária. Murillo, no entanto, lembrou que as exigências
feitas pela Pfizer são praticamente idênticas no mundo todo; elas foram
aceitas, por exemplo, por Estados Unidos e União Europeia, e mesmo o
Brasil acabou aceitando-as também quando fechou seu primeiro contrato
com a Pfizer, em março. Além disso, elas não diferem tanto daquelas
impostas por outros laboratórios – a cláusula de não responsabilização,
aliás, foi aceita pela própria Fiocruz em seu contrato com a AstraZeneca
ainda em setembro de 2020.
Portanto,
não é exagero algum falar em omissão do governo federal no caso da
Pfizer. O país poderia ter fechado negócio ainda em 2020, o que
consequentemente teria acelerado também os trâmites na Anvisa, e já
poderia ter aplicado ao menos alguns milhões de vacinas a mais. Vidas
perdidas para o coronavírus poderiam ter sido salvas – quantas
especificamente, é impossível estimar. Mas certamente estaríamos mais
adiantados na busca pelo retorno à normalidade sanitária, econômica e
social, um processo que outros países já estão vivendo – inclusive com a
ajuda da vacina que o governo brasileiro por tanto tempo recusou.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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