Vou
chutar que era o ano de 1989. Numa viagem rápida a Foz do Iguaçu para
admirar as Cataratas, se esbaldar de azeitonas e pêssegos argentinos e
adquirir eletrônicos no Paraguai, meus pais compraram também um saco de
risadas e uma fita-cassete (instrumento rudimentar de reprodução musical
usado no Paleolítico) com um show de Ary Toledo. E logo trataram de
escondê-la, por seu conteúdo proibitivo para os filhos.
Ao
saber que havia algo de muito proibido naquela fita, minhas orelhas,
então de abano, logo se eriçaram. (Não sei se é comum orelhas se
eriçarem, mas na minha memória elas se eriçaram, sim). E, na primeira
oportunidade que tive, é claro que fui vasculhar as coisas paternas e
maternas atrás da fita proibida.
Durante
alguns anos, enquanto tive um aparelho para reproduzir aquela fita, ri
horrores com o humor de Ary Toledo. Sobretudo com as impublicáveis
músicas do Zé e da Rosinha (minha preferida), que ainda sei de cor e com
as quais ainda faço rir os amigos.
Com
ele aprendi muito cedo (talvez cedo demais), o poder transgressor de um
humor sujo (por causa dos palavrões), mas limpo de intenções alheias ao
riso. Não há, nas piadas contadas por esse talentoso e popularíssimo
ator (a interpretação de Ary Toledo para a sofrida "Pau de Arara", de
Carlos Lyra e Vinícius de Moraes, é coisa digna de estátua), qualquer
vontade de transformar o mundo, de destruir as bases da sociedade
judaico-cristã, de promover a crítica social ou sei lá qual outro slogan
seduz os ouvidos dos artistas e plateias de hoje.
O
humor de Ary Toledo é simples. É, a seu modo, puro. Diria que até
ingênuo. Ele só pretende fazer rir - quer utilidade mais nobre? O que
talvez explique o fato de, ao longo de mais de 60 anos de carreira, Ary
Toledo jamais ter sido importunado por grupos identitários quaisquer.
A
conversa, realizada por telefone, começou algo tímida, mas logo Ary
Toledo (que se recupera de uma pneumonia e que, por causa dela, se cansa
fácil ao falar) desandou a entremear respostas e piadas e a fazer
críticas aos standupeiros, que vulgarizaram o palavrão e passaram a ver
no humor uma forma de fazer política. Os trinta minutos passaram voando
e, quando percebi que estava na última pergunta, fui tomado por uma
súbita melancolia.
Só
me restou, pois, agradecer imensamente ao homem de corpanzil
avantajado, olhos ávidos e fala rápida por ter acendido em mim (e em
tantos outros) a centelha desse humor que, apesar da sujeira e da
transgressão, considero divina. Afinal, a risada sincera tem esse poder
de nos dar a exata dimensão de nossas fraquezas, da nossa pequenez e da
desimportância de boa parte das nossas causas mundanas.
Com vocês, o grande (em todos os sentidos) Ary Toledo:
Oi, Ary. Você... O senhor... Posso te chamar de você, né?
Claro. Aliás, já começo dizendo que não tenho idade avançada. Tenho é juventude acumulada. Pode botar aí na entrevista.
Já
botei. (risos) Nessas suas seis décadas de carreira, você certamente já
ouviu muitas vezes as mesmas perguntas. Que perguntas você não aguenta
mais ouvir de jornalistas como eu?
Ah,
já dei muitas entrevistas mesmo, mas aguento ouvir de tudo. Não se
preocupe com isso, viu? Pode perguntar o que quiser que eu respondo com a
mesma resposta que já dei ao longo dos anos. Respondo com o maior
prazer.
[Neste
momento confesso que esperava que Ary Toledo falasse que não aguenta
mais perguntas sobre os limites do humor para eu perguntar qual o limite
do humor. Mas não deu certo].
Ouvi dizer que você anda recluso, não quer nem falar com a imprensa.
É
por causa do cansaço. Recentemente tive uma pneumonia feia e meu pulmão
foi afetado. E por isso até hoje eu tenho dificuldade para falar, me
canso muito fácil. Mas não é cansaço do mundo, não. É cansaço da
pneumonia só.
Outro
dia, sabendo que eu iria entrevistar o senhor, digo, você, comecei a
pensar no palavrão. O palavrão perdeu muito do seu poder de
transgressão, não acha? Antigamente um palavrão bem colocado fazia rir.
Hoje em dia...
Concordo.
Acontece que o pessoal mais novo não respeitou a importância do
palavrão. E o palavrão precisa ser respeitado, sabe? Não pode
vulgarizar. O palavrão tem que ser usado com inteligência, com
elegância. Hoje em dia o pessoal usa o palavrão como se fosse vírgula. E
nisso você está desmoralizando, menosprezando o palavrão. Ele não pode
ser usado aleatoriamente. Muitos humoristas standupeiros estão fazendo
isso. O palavrão virou vírgula. O que só mostra que eles não têm
qualidade para fazer um espetáculo. Fica um humor deselegante, chato. E
eu vou continuar com essa opinião até morrer, porque não é possível você
passar a vida toda criando, se dedicando, pesquisando, produzindo e
depois ver tudo o que você fez desmoralizado num segundo. Desculpe pelo
desabafo.
Não tem por que pedir desculpas, imagina.
É
que o palavrão é isso mesmo. Um ato de desabafo. É transgressor. Você
sabe que eu tenho um amigo muito educado, né? O Ronnie Von. O Ronnie Von
é tão educado que outro dia bateu a cabeça na porta e continuou
chamando a porta de porta.
Hoje
em dia humor transgressivo é falar de religião. Aqui mesmo na Gazeta,
todo ano eu escrevo um texto sobre o especial do Porta dos Fundos. Você
gosta de fazer humor com religião?
Olha,
o humor com a religião não me incomoda, mas não é a isso que me
proponho. Então eu não faço. Acontece que fazer gozação com a religião é
muito perigoso. Nos anos 1960, no Rio, tinha um pintor expressionista
muito elogiado, mas que um dia teve a infeliz ideia de pintar Nossa
Senhora de minissaia. Nunca mais se ouviu falar dele. Então tem que
saber dosar. Essa coisa de dizer que o humor não tem limite é mentira.
Humor tem limite, sim. Existe uma fronteira e o humor inteligente não
atravessa essa fronteira. Basta ver o que aconteceu com o Rafinha
Bastos. Ele ultrapassou essa fronteira. Tinha uma carreira brilhante,
mas parou por ali.
E o público também acaba entendendo não como algo engraçado, e sim como um desrespeito, não?
Sim,
o público entende como desrespeito. Conheço muitas piadas que podiam
até ser ditas, contadas, podiam estar em espetáculos meus. Mas quando
penso nelas eu vejo que estou ultrapassando um limite. Para você ver
como eu sou perfeccionista nisso. Tem uma piada que diz que o presidente
da Coca-cola chegou para o Papa e ofereceu 20% da renda da Coca-cola em
troca de o Papa mudar o Pai Nosso. De tirar “o pão nosso de cada dia” e
substituir por “a Coca-cola nossa de cada dia”. O Papa expulsou o cara
do Vaticano. Aí o presidente da Coca-cola voltou e ofereceu 50%, 80%. O
Papa se virou para o bispo Ambrosiano ali ao lado e falou: “Bispo, vai
lá e vê quando vence o nosso contrato com a panificadora”.
Tá
vendo? Esse é o tipo de piada que eu não faço. Tem aquela outra da
bicha que foi ao Vaticano, beijou o anel papal e disse “Ai, que anel
lindo você tem”. E o Papa respondeu: “Isso porque você não viu o par de
brincos que o Vaticano não me deixa usar!”. Tá vendo. Essas são piadas
que não conto. Mas os standupeiros contam sem cerimônia. Eu não. Eu
penso duas vezes antes de contar.
[Aqui eu tenho a impressão de que Ary Toledo acha que eu não pesquei a ironia da coisa toda. Pesquei, sim, Ary].
O Brasil é um país triste ou alegre?
No
momento é um país triste. Na década de 1960, quando eu comecei minha
carreira, era alegre. A gente tinha acabado de ser campeão do mundo, em
1958. A gente tinha Éder Joffre, Cartola, Vinícius, Carlos Lira, Tom
Jobim. Hoje a gente tem essa turma aí que faz um lixo musical,
deseducando nossa juventude. E a juventude não tem culpa, não. Eles
recebem o que lhes oferecem. Atenção para a metáfora: macaco só come
banana porque só dão banana pra ele. Essa história de que o artista dá o
que o povo pede não é bem verdade. Mas tá ruim assim em tudo, na
política, em todos os setores da sociedade há uma decadência terrível.
Hoje o Brasil é um país triste.
Na atual conjuntura, você se sente à vontade para fazer humor político?
Muito
à vontade. Mas eu gosto mais do humor pornográfico do que do humor
político, porque o humor pornográfico é mais limpo. Tem uma piada que eu
devo contar no meu show, quando eu estiver melhor de saúde. Um senhor
estava lá em Brasília, na frente da Câmara dos Deputados, quando ouviu
gritos. “Canalha!” “Safado!” “Ladrão!” “Corrupto!” “Mensaleiro”. Aí ele
perguntou para o segurança se os deputados estavam brigando. O segurança
respondeu: “Que nada. Eles estão é fazendo a chamada nominal”.
Política tem graça atualmente?
Tem,
tem. Eu vou contar uma para agradar seus leitores. Um brasileiro que
falava tudo errado chegou no Céu e foi conversar com São Pedro. “Já que o
senhor vai me deixá entrá, será que podia me colocá na ala dos
intelectual? É que eu falo tudo errado e preciso aprimorá minha cultura.
Lá no Brasil o pessoal vivia gozando de eu”. São Pedro disse que não,
que ele iria para a ala dos filósofos. Pra conviver com Sócrates,
Aristóteles, Platão. E o brasileiro foi. No dia seguinte, São Pedro
abriu a porta e encontrou um chinês de dedo em riste, gritando: “Seu
Lula, pela enésima vez, epístola não é mulher de Apóstolo! Encíclica não
é bicicleta de uma roda só! Eucaristia não é o aumento de custo de
vida! Quem trabalha na Nasa não é nazista! Quem tem pacto com o diabo
não é diabético! Superstição não é um tição deste tamanho! E tem mais
uma coisa: o meu nome é Confúcio! Pafúncio é a PQP!”
Mas você diria que é mais perigoso falar de política hoje em dia?
Ah,
sempre é. Arrisca sempre alguém na plateia ser contra. Mas, no geral, a
plateia se diverte muito. No meio das risadas eu sei que sempre tem
aqueles que não concordam e que, por educação, não vaiam, não gritam,
não fazem nada. Mas eu diria que 90% do público gosta.
E os políticos, gostam? Tenho a impressão de que antes os políticos não ligavam tanto para as piadas de que eram alvo.
Nenhum
político reclamou para mim. E muitos foram aos meus shows. Muitos. De
direita, de centro, de esquerda. Até o Maluf. E eu contava uma piada do
Maluf que era assim: no dia em que o Túnel Ayrton Senna foi inaugurado,
tinha um garotinho ali perto deixando a bicicleta no mesmo lugar em que
sempre deixava. Apareceu um guarda e disse que o garotinho não podia
deixar a bicicleta ali naquele dia. O menino reclamou, disse que sempre
deixava a bicicleta ali e não tinha problema. O guarda disse que naquele
dia específico não podia, porque o prefeito Maluf passaria por aquele
lugar. E o garotinho: “Não tem perigo. Eu passo um cadeado na
bicicleta”.
Uma
vez eu falei com o Lula. Ele me disse com aquela voz dele: [imitando o
Lula] ”Ary, fiquei sabendo que você anda contando piada sobre mim no
show”. Eu tentei justificar, mas ele me interrompeu dizendo: “Não tem
problema. Falem mal, mas falem de mim”.
Mas
tenho a impressão de que os standupeiros não gostam muito de falar de
política. Eles preferem criticar mais a sociedade em geral. E às vezes
até de uma forma exagerada.
Você já foi alvo de grupos por causa das suas piadas? Gays, portugueses, negros...
Nunca.
Nunca ninguém reclamou. Nem gay, nem negro, nem judeu. Nunca ninguém
nem tentou me processar. Aliás, tem a piada da bicha, filha de um pai
conservador e milionário. A bicha falou pro pai: “Papi, eu quero estudar
inglês”. E o pai mandou a bicha pra Inglaterra. Ela foi. Depois de uns
meses, o pai conservador e milionário ligou pro filho e perguntou: “E
aí, filho, como é que está o seu inglês?” E a bicha respondeu. “Tá
tomando banho”.
Mas
teve uma noite que eu passei na prisão, no DOPS. Naquele dia, no meu
show, eu disse que não queria mais falar de política. Porque o AI-5
proibia mesmo. Nessa época, um amigo meu perguntou o que eu estava
achando da ditadura e eu respondi pra ele que não estava achando nada.
“Tenho um amigo meu que achava e agora eu é que não acho o amigo”.
A
ditadura estava no auge. Aí o show já estava no fim quando eu disse que
não queria mais falar de política, mas que “aqui eu uso todas as minhas
ferramentas para fazer rir. Porque quem não tem cão caça com gato e
quem não tem gato cassa com ato”. Para o meu azar, tinha um agente do
SNI na plateia. E aí não teve jeito. Fui convidado a ir ao DOPS. Por
sorte, cheguei lá e o coronel responsável era meu fã. Não cheguei nem a
ser preso. Só passei a noite mesmo.
E, Ary, você já tem piada de Covid? Conta uma piada de Covid pra gente?
Ah,
conto, sim. O sujeito estava andando na rua e encontrou um amigo
cabisbaixo. Triste mesmo, sabe? Ele perguntou pro amigo: “Zé, o que é
que você tem? Por que você tá tão triste”. O Zé respondeu: “Claro que tô
triste. Minha mulher me corneou, minha filha virou sapatão, meu filho
virou bicha, fui despejado, recolheram meu carro, tô todo f&%$do”.
Aí o sujeito disse pro amigo: “Mas, Zé, que coisa! Na sua vida só tem
coisas negativas? Não tem nada de positivo mesmo?” E o Zé: “Tem, sim. O
exame de coronavírus”.
Ary,
foi um prazer falar com você. E queria agradecer muito pelas risadas e
até pelas chineladas que recebi quando minha mãe me pegou ouvindo uma
fita-cassete com seu show.
O
prazer foi meu. Mas antes de desligar quero dizer que as pessoas
bem-humoradas são menos suscetíveis às doenças do coração. Então, ande
sempre com um sorriso nos lábios. Se a vida lhe der um limão, faça uma
limonada. Se lhe der laranja, faça uma laranjada. Se lhe der goiaba,
faça uma goiabada. Se lhe der um cágado... dê de presente para alguém.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
Nenhum comentário:
Postar um comentário