Diretor de documentário sobre o terremoto político que levou à eleição de Bolsonaro, Josias Teófilo lamenta a ausência de uma política cultural e diz que sofre boicote da esquerda por ser conservador. Entrevista à Oeste:
Diretor
do premiado O Jardim das Aflições (2017), sobre o professor, ensaísta e
ideólogo Olavo de Carvalho, o cineasta pernambucano Josias Teófilo, de
33 anos, deve lançar em junho o seu novo documentário. Nem Tudo Se
Desfaz joga luz sobre alguns dos momentos cruciais da vida política
nacional nos últimos anos, traçando um paralelo entre as “Jornadas de
Junho”, em 2013, e a ascensão de Jair Bolsonaro ao Palácio do Planalto,
com a improvável vitória eleitoral de 2018.
Nesta
entrevista à Revista Oeste, Teófilo classifica o movimento que tomou as
ruas do país como “revolucionário” e aponta Bolsonaro como “herdeiro”
do sentimento de indignação que mobilizou os brasileiros. Conservador, o
cineasta diz que sofre uma tentativa permanente de silenciamento por
parte da esquerda. O filme não foi aceito na seleção do Festival
Internacional de Documentários É Tudo Verdade — cuja 26ª edição teve
início na quinta-feira 8 —, o que não surpreendeu o diretor: “Eu sabia
que poderia ser a obra-prima que fosse, e não passaria jamais. A gente
sabe que o pessoal é de esquerda, não quer dar esse espaço”.
Apesar
de ter apoiado Bolsonaro em 2018, Teófilo afirma que “não há uma
política cultural” levada a cabo pelo atual governo, que já teve seis
secretários da Cultura em pouco mais de dois anos: Henrique Pires,
Ricardo Braga, Roberto Alvim, Regina Duarte e Mario Frias, o atual
ocupante da pasta (além de José Paulo Martins, que teve duas passagens
como interino). Teófilo aponta “desmandos” no uso da Lei Rouanet em
governos anteriores, mas defende incentivos ao setor. E também conta por
que não aceitou o convite para embarcar no governo Bolsonaro. “É melhor
eu trabalhar nas minhas coisas, e o governo tem que ter outro perfil de
pessoas. E eu estou muito feliz com o filme e quero focar nele mesmo.”
Leia os principais trechos da entrevista.
Em
Nem Tudo Se Desfaz, você se propõe a explicar a ascensão da direita ao
poder no Brasil a partir da conexão entre episódios como as
manifestações de 2013, a Lava Jato, o impeachment de Dilma Rousseff, a
prisão de Lula e a facada em Jair Bolsonaro. De que forma esses
episódios se relacionam e desaguam no resultado das urnas em 2018?
Muita
coisa emergiu em 2013. Não é que começou ali. Tudo o que veio à tona já
estava ali, no seio da sociedade. A direita já estava se organizando,
Olavo [de Carvalho] já era uma figura influente nas redes sociais. É
muito importante lembrar que a direita se formou para entender o que
estava acontecendo. Agora, a questão política tem mais a ver com a lei
das delações premiadas [Lei 12.850, sancionada por Dilma Rousseff em 2
de agosto de 2013, que regulamenta a chamada “colaboração premiada”],
aprovada para acalmar os manifestantes. Foi uma forma que a classe
política utilizou para acalmar a ira das massas. No meu filme, os
movimentos de massa são muito importantes. Eu uso trechos do livro Massa
e Poder, do Elias Canetti [Editora Companhia de Bolso, 2019]. Não foi
só a Dilma, foi a classe política inteira. Isso veio a deslegitimar a
classe política de forma geral. A Lava Jato descobriu tanta coisa que o
próprio sistema político ficou em xeque.
Qual é sua interpretação sobre o fenômeno eleitoral Jair Bolsonaro em 2018?
Acho
que é um processo revolucionário. Bolsonaro ganhou tendo o menor
orçamento das recentes campanhas para presidente. Foi um fato
absolutamente sem precedentes. O cara não tinha uma estrutura para
ganhar. Ele só tinha voluntários, na sua maioria. Pessoas desorganizadas
e que não tinham uma articulação. E ele foi viajando pelo Brasil e
conseguiu ganhar. Ele é sincero. Para o mal ou para o bem, ele fala no
que acredita. E as pessoas sentem isso. Até o fato de ele ser contra a
mídia, falar muito contra a imprensa, isso também é uma herança de 2013.
As pessoas começaram a ficar com um ódio terrível de algumas
corporações de mídia. O apartidarismo, o nacionalismo dele… Ele foi uma
figura que recebeu o espólio das manifestações de 2013. Essa é a minha
tese. E tem muita gente de esquerda que concorda com isso. Bolsonaro é
herdeiro do movimento revolucionário de 2013, o que não tem nada de
elogioso. Para a esquerda, revolução é uma coisa gloriosa. Para a
direita, não necessariamente. A Revolução Francesa só deu merda. Não tem
nada de elogioso dizer que o Bolsonaro é herdeiro do movimento
revolucionário de 2013. Mas ele é.
O documentário não foi aceito na seleção do Festival É Tudo Verdade. Como você recebeu essa recusa?
Eu
já imaginava, inclusive porque na versão que mandei para o festival o
filme ainda não estava muito completo… Não era tão final assim, ainda
não tinha várias coisas. Mas eu sabia que poderia ser a obra-prima que
fosse, e não passaria jamais. A gente sabe que o pessoal é de esquerda,
não quer dar esse espaço.
Você é um cineasta de viés conservador. Como é para alguém de direita fazer cinema no Brasil?
Eu
sou um cineasta de Pernambuco. Não moro mais lá. Mas, quando se fala de
cineastas pernambucanos, as pessoas normalmente mencionam também quem
não vive mais no Estado. E, veja só, eu nunca sou citado quando se fala
de cinema pernambucano. Jamais. Meu documentário, O Jardim das Aflições,
foi visto por 26 mil pessoas [20 mil com o filme em cartaz e 6 mil nas
sessões especiais]. Foi o documentário mais falado de 2017, ganhou três
prêmios [o melhor filme da mostra competitiva, a melhor montagem e o
melhor filme pelo júri popular do Cine PE]. Mesmo assim, não entra em
nenhuma lista de documentários brasileiros. Não se comenta sobre ele na
história recente dos documentários brasileiros. O que eles querem é
apagar, fingir que não existe. Mas a arte não se deixa moldar por essas
questões. Eu vou te dar um exemplo: Éric Rohmer [1920-2010] é um
cineasta francês, católico e monarquista, e os filmes dele são hoje
apreciados pela maior parte da esquerda. O pessoal adora, tem uma
afinidade estética, sei lá por quê. Já os filmes do Luchino Visconti
[1906-1976], que era comunista, faziam muito sucesso com a direita.
O ator Carlos Vereza, que inicialmente faria a narração do documentário, deixou o projeto. O que aconteceu?
O
Vereza deixou de apoiar o governo, inclusive com muita razão. Quando
acabaram com a TV Escola, ele estava lá fazendo projetos na Cinemateca.
Ele via a importância da Cinemateca, que estava dentro do sistema da
[Associação] Roquette Pinto. Veio o governo e destruiu tudo. Foi um
negócio muito mal realizado. Fizeram essa coisa lamentável. Aí, Vereza
deixou de apoiar o governo e começou a fazer críticas públicas. Por mim,
não tem problema nenhum, até porque o filme não é pró-Bolsonaro, é para
contar a verdade. Estou interessado na verdade, não em agradar
Bolsonaro, fazer propaganda para ele, nem nada parecido. Uma coisa que
pegou e o desagradou um pouco foi tratar Bolsonaro como um
revolucionário. Ele entendeu isso como uma coisa positiva. Eu tentei
explicar, dizendo que não é necessariamente positivo. Revolução não é
uma coisa sempre boa. Mas é um processo revolucionário? Sim, é um
processo revolucionário. Aí ele optou por sair do projeto, mas a gente
se encontra perfeitamente bem, e a amizade continua. Eu quero muito
dirigi-lo em outro filme, se puder. Vereza é muito especial. Eu achei
outro ator, da mesma geração do Vereza, que é o Reinaldo Gonzaga. Tem
uma voz maravilhosa, é um excelente ator. A gente se entendeu muito.
Como avalia a política cultural do governo Bolsonaro?
Não
há uma política cultural no governo. Não tem. O que aconteceu foi que
finalmente o presidente achou um secretário que o defendesse. Eles se
entenderam. Foi uma área problemática desde o começo. Mas o Mario Frias
conseguiu achar um equilíbrio que, ao mesmo tempo, agrade ao presidente e
não destrua toda a estrutura da cultura. Porque, se depender do
presidente, ele vai simplesmente fechar as coisas e colocar dinheiro em
outras áreas. Embora talvez ele nem possa fazer isso porque o Congresso
vetaria. Acabar com a Ancine [Agência Nacional do Cinema], por exemplo,
seria péssimo. [Fernando] Collor acabou com a Embrafilme [Empresa
Brasileira de Filmes], e o que produzimos? Nada. O cinema brasileiro
simplesmente parou, ninguém colocava um centavo. Repetir isso aí não faz
o menor sentido. De todo modo, o presidente e Mario Frias acharam um
equilíbrio: vamos continuar com as leis, mas elas terão prestação de
contas. Rigorosamente tudo vai ter que ter prestação de contas. Veja
bem, também não acho que isso seja totalmente factível. Não há estrutura
de governo que resista, que consiga prestar contas de absolutamente
tudo. É uma situação muito complicada, não sei como resolver, mas acho
que o Mario Frias tem que continuar fazendo isso. Se confrontar o
presidente, ele cai. Se ele disser “vamos aprovar como antes, vamos
aprovar tudo”, o presidente não vai gostar disso. Só que ele tem de
levar em conta que as pessoas precisam fazer os filmes, né?
O
documentário foi realizado por meio de financiamento misto, com isenção
fiscal (via Lei do Audiovisual) e crowdfunding. Qual é sua opinião
sobre as leis de incentivo à cultura, como a do Audiovisual e a Lei
Rouanet?
As
leis, em si, são boas. O problema é que elas foram muito mal utilizadas
durante os governos anteriores. Foram muitos desmandos que aconteceram.
Gente pagou festa privada com a Lei Rouanet, gente que pagou casamento,
gente que fez festa de empresa… É uma visão muito ruim do que são as
leis de incentivo. Na verdade, qualquer lei pode ser subvertida, mal
utilizada. Eu entendo parte da direita que critica as leis e quer que
elas acabem porque a coisa ficou tão feia… Não tem mistério: se você
começa a usar a lei para fazer produtos culturais ruins, para produzir
lixo, como vem sendo feito até hoje, as pessoas começam a se perguntar
por que devemos gastar dinheiro com isso. Mas não é só a direita que
critica a Lei Rouanet. Lula tentou mudá-la. Quando Sérgio Paulo Rouanet
[secretário da Cultura no governo Collor] criou a lei, a esquerda caiu
em cima dele. É preciso lembrar disso também. Tem mais: a maior parte
dos projetos aprovados na lei nem consegue obter recursos. Quando se
fala de Lei Rouanet, as pessoas pensam que é dinheiro direto: aprovou R$
5 milhões, caem R$ 5 milhões na sua conta. Na verdade, a captação é um
processo complicadíssimo. O que a esquerda gosta é dos editais, porque
cai o dinheiro direto, e eles dão para os amigos. A pior coisa que
existe é a cultura dos editais. Você lança não sei quantos milhões, as
pessoas inventam os projetos por causa dos editais. Não é que elas já
têm os projetos e vão inscrevê-los. Isso é muito ruim. Agora, as leis de
incentivo em si são boas porque não julgam o mérito artístico do
projeto. Não é um julgamento ideológico. A lei é ótima. Se alguém de
direita quiser fazer um longa-metragem, vai poder fazer.
No
final de 2019, você foi sondado para assumir o cargo de secretário da
Cultura. Houve outras conversas nesse sentido depois? Aceitaria fazer
parte do governo Bolsonaro?
Sim,
eu fui sondado para ser secretário. Foi logo quando deu aquele
escândalo do [Roberto] Alvim [o então secretário especial da Cultura foi
exonerado depois de utilizar frases extraídas de um discurso nazista
durante um pronunciamento]. Houve uma articulação dentro do governo para
que eu fosse secretário. E, naquele momento, aceitei. Depois, a Regina
Duarte veio conversar comigo e perguntou se eu gostaria de ocupar algum
cargo e lhe disse que não queria mais. Se ocupasse qualquer cargo, meu
filme ficaria marcado, e aí eu não aceitei. Já havia recebido outras
sondagens para cargos no governo, e neguei. Acho que cada um tem que
trabalhar numa área. É melhor eu trabalhar nas minhas coisas, e o
governo tem que ter outro perfil de pessoas. E eu estou muito feliz com o
filme e quero focar nele mesmo.
Você
não entrevistou Jair Bolsonaro para o documentário. O depoimento dele
fez falta? E o que você espera despertar em quem assistir a Nem Tudo Se
Desfaz?
Achei
que entrevistar o presidente não seria necessário. Gostei muito dos
entrevistados que a gente conseguiu. Não fiquei só nisso [na vitória de
Bolsonaro em 2018]. Quis contar a história inteira para as pessoas
poderem entendê-la. Entender o Brasil de hoje é uma tarefa e tanto.
Encomendei uma trilha sonora original para órgão, violoncelo e piano.
Ficou bem legal, e a impressão que tive é que ela inspira geometrismos. E
geometria é a tentativa de organização do caos. Esse é um dos objetivos
do filme. Organizar o caos para o público entender o que aconteceu no
Brasil dos últimos anos.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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