Defensores
da Escola Sem Partido ou do homeschooling (educação domiciliar) no
Brasil costumam elencar entre os argumentos para suas causas o fato de
que professores, especialmente os que se dedicam a ensinar História, são
quase sempre esquerdistas e doutrinadores. Como coautor, em 2007, de
uma reportagem de capa na revista Veja sobre Che Guevara com título ("A
Farsa de Um Mito") e conteúdo evidentemente iconoclastas, posso atestar
que irritei muitos professores de História. Por outro lado, sei que
muita gente de esquerda, na época, a partir daquele texto provocativo,
repensou ou reviu a imagem idealizada que tinham do revolucionário
argentino, deixando de endeusá-lo ou de tê-lo como símbolo da luta
contra a opressão.
Apesar
disso, ainda que eles possam ter algum problema comigo, não tenho
nenhum problema com professores de História de esquerda. O fato de serem
esquerdistas não significa que sejam doutrinadores. Foi com meus
professores de esquerda, nos tempos de colégio, que aprendi a ter
espírito crítico. Eram os que mais estimulavam os alunos a ter
pensamento próprio — ainda que por vezes isso levasse a visões
contrárias às deles próprios.
Atualmente,
gosto da ideia de meus filhos terem professores de esquerda. Que pobre
seria a educação humanista deles se só conhecessem a visão de mundo que
lhes é apresentada no meio familiar.
De
resto, ensinar História exige uma objetividade que o bom professor, de
esquerda ou de direita, saberá respeitar. Os alunos não são páginas em
branco nas quais se pode imprimir qualquer interpretação dos fatos ou
qualquer valor que se queira. Muito menos em um mundo como o atual, em
que fontes de informação alternativas estão ao alcance de todos.
Ensinar
História se faz mais necessário do que nunca na era da pós-verdade, das
fake news e de discursos revisionistas. Ensinar História é a melhor
vacina contra a mentira.
Um
excelente livro da Editora Contexto, com lançamento previsto para o
final deste mês e já em pré-venda nas livrarias virtuais, aprofunda esse
debate sobre o estudo e o ensino de História e sua importância nos dias
de hoje. Organizado por Jaime Pinsky e Carla Bassanezi Pinsky, a obra
Novo Combates pela História traz capítulos escritos por cinco destacados
historiadores brasileiros da atualidade.
Na
introdução, os organizadores relembram um fato que deveria ser óbvio
para todo mundo, mas que tem sido diluído no atual contexto de cacofonia
midiática (o que inclui desde a tia do zap até influencers digitais de
diferentes matizes políticos): fazer História exige formação
especializada e muita dedicação em pesquisa rigorosa com objetivo de
buscar a verdade dos fatos.
Fazer
História não tem nada a ver com "direito de opinar", como querem fazer
aqueles que buscam fazer um uso político da deturpação da História. O
limite da interpretação dos fatos é quando ela se choca com os fatos.
"Querem mudar a História utilizando a técnica do negacionismo,
recusando-se a admitir fatos indiscutíveis, como o massacre dos armênios
pelos turcos, ou o holocausto, que dizimou a cultura secular do
judaísmo europeu", escrevem os organizadores do livro. "Negacionismo que
tenta apagar da História a repressão violenta e criminosa de regimes
autoritários de todas as bandeiras, fascistas e stalinistas, de direita e
de esquerda."
O
que se está dizendo não é que se espera neutralidade do observador ao
perscrutar o passado com o olhar do presente, o que é próprio do estudo
da História, mas que não se pode admitir, nesse processo, a distorção ou
a omissão dos fatos para atender as próprias bandeiras.
No
capítulo em que discute a importância do ensino de História nas
escolas, a historiadora Maria Ligia Prado esmiúça um exemplo de
revisionismo histórico "sem embasamento teórico e empírico" muito em
voga atualmente no Brasil, o de que os fatos de 31 de março de 1964 não
consistiram em um golpe de estado. Ela cita a Ordem do Dia assinada pelo
ministro da Defesa e pelos comandantes das Forças Armadas em março do
ano passado referindo-se aos acontecimentos da data como um "movimento" e
um "marco para a democracia brasileira", como reação "às ameaças que se
formavam àquela época".
Os
fatos são inequívocos. Em 31 de março de 1964, o general Olímpio Mourão
Filho colocou as tropas na rua e, no dia seguinte, o presidente João
Goulart foi deposto. "Deu-se a quebra da legalidade constitucional." O
regime ditatorial que se seguiu restringiu por anos os partidos, cassou
direitos políticos, instituiu a censura e promoveu a tortura. Tudo isso
está fartamente documentado.
Recomendo
a leitura adicional da excelente reportagem publicada na Gazeta do Povo
em março de 2019, com autoria de Tiago Cordeiro, que explica, com
clareza na apresentação dos fatos e dos conceitos, por que os
acontecimentos de março e abril de 1964 foram, sem sombra de dúvida, um
golpe de estado. Leia neste link.
A
ideia de que o Brasil de João Goulart estava caminhando para uma
ditadura comunista também carece de embasamento empírico. Jango não era
comunista. Proprietário de terras no Rio Grande do Sul, era um
trabalhista da linhagem de Getúlio Vargas. Grupos políticos de esquerda
da época alinharam-se ao seu governo mais por conveniência pragmática do
que por alinhamento ideológico e deixaram de lado planos imediatos de
tomada do poder pela revolução proletária. Na realidade, foi justamente a
instauração da ditadura militar o fator que empurrou comunistas de
então para a luta armada.
Havia
elementos radicais apoiando Jango? Sem dúvida. O também trabalhista
Leonel Brizola, cunhado do presidente, era um incendiário, imitado por
outros tantos, como o líder estudantil José Serra, cujo discurso em
comício a favor de reformas de base na Central do Brasil deu o tom do
clima de confronto que serviu de desculpa para o golpe dezoito dias
depois.
Houve
apoio de setores da imprensa e da sociedade ao golpe? Sim, houve. Mas é
falsa a afirmação de que Jango não tinha apoio da população. Uma
pesquisa do Ibope feita em março de 1964, mas só publicada em 1989,
indicava que João Goulart se reelegeria fácil com metade dos votos caso
pudesse concorrer.
Negar
que em 31 de março de 1964 houve um golpe de estado no Brasil não é
reescrever a História com base em novos fatos recém-revelados, mas sim
reescrever à História por meio da omissão ou da distorção de fatos
inequívocos.
E
é por causa de exemplos de revisionismos sem embasamento como esse que
ensinar História é tão importante em tempos de relativização da verdade.
Em seu capítulo dedicado às fake news, o historiador Bruno Leal lembra
que a mentira sempre foi, ao longo da História, um instrumento de poder
ou de manipulação política. Exemplo: "Otaviano procurou manchar a honra
de Marco Antônio, membro da República Romana, com informações falsas
sobre sua relação com Cleóptara. Otaviano, antes de se tornar imperador,
chegou a gravar em moedas pequenas frases difamatórias contra Marco
Antônio, chamando-o de bêbado e mulherengo — como se fossem os atuais
tuítes.
Leal
descreve também a conhecida história dos Protocolos dos Sábios de Sião,
livro apócrifo do início do século XX que uniu informação fraudulenta a
teorias da conspiração com o propósito de justificar a perseguição a
judeus.
Informações
falsas e distorções da história, demonstra Leal, serviram como
justificativa para perseguições étnicas, golpes militares e outros
propósitos escusos ou autoritários. Ele propõe algumas soluções para
combater as fake news, como a criação de uma legislação específica e o
trabalho incessante de agências de checagem de fatos.
Uma
das soluções que emergem do conjunto de artigos contidos no livro Novos
Combates pela História é justamente o ensino da História: compreendendo
o papel da mentira nos regimes autoritários (por exemplo, a prática
soviética de apagar das fotos os líderes que caíram em desgraça) e
incentivando os alunos a ter pensamento crítico, pode-se imunizar as
novas gerações para a disseminação de fake news e negacionismos
históricos.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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