Chico Buarque está arrependido. Sócrates iria inspirar as sequelas “Nova Ópera do Malandro”, “Ópera do Malandro – O Regresso” e “Ainda Mais Ópera, Ainda Mais Malandro”. José Diogo Quintela para o Observador:
Se
tudo tiver corrido como o Instituto Nacional de Estatística planeou, a
esta hora José Sócrates estará a dar murros no teclado e a berrar com o
computador. Como todos nós, recebeu a carta dos Censos 2021, foi ao site
preencher o questionário e, pumba!, assim que apareceu a pergunta:
“Qual a principal fonte de rendimentos nos últimos 12 meses?” desatou
aos gritos. “Porra, pá! Perguntas à Correio da Manhã, pá! Já respondi a
isto, pá! São empréstimos da minha mãe! E do Carlos! E da Caixa!”
Imagino a explosão de fúria contra a “pusilânime urdidura de
estatísticos velhacos”.
Sócrates
já não devia estar bem-disposto. Se a pergunta: “Nível de escolaridade
que completou?” lhe tinha parecido uma provocação rasteira, por causa da
licenciatura duvidosa, a questão sobre os rendimentos deixou-o
furibundo. É impossível que tenha respondido com honestidade. Se não o
faz perante juízes ou jornalistas, não é de esperar que o faça a
burocratas estatais. Não sei qual a margem de erro com que o INE conta,
mas é melhor alargá-la quando estiver a coligir os dados da Freguesia da
Ericeira. Ou então estou a fantasiar e não se passou nada disto: José
Sócrates limitou-se a pedir a Carlos Santos Silva que responda, uma vez
que é quem tem as informações sobre aquele agregado.
Desde
a decisão do juiz Ivo Rosa, José Sócrates voltou à ribalta mediática e é
natural que, à medida que a memória é avivada, uma pessoa se lembre de
episódios antigos com graça. Pesquisando nos meus arquivos, tenho dado
com material estupendo. A primeira crónica que escrevi na imprensa, em
2005, já falava em Sócrates. Foi no Independente, a propósito da
campanha eleitoral que o iria tornar Primeiro-Ministro. A partir daí,
instalou-se na minha coluna como se esta fosse um apartamento
emprestado. Tenho recordado com saudade as aventuras do nosso
quasengenheiro predilecto e descobri que, caso queira, poderei reviver
aqui um episódio rocambolesco por semana, até 2027.
Ao
lembrar essas ocorrências, umas mais circenses, outras mais sérias, é
divertido ver aqueles socialistas, que negavam os claros indícios de que
Portugal estava perante (e sob) um tipo novo de intrujão, a começarem
agora a denunciar a vigarice de Sócrates. Pelos vistos, apesar de os
factos serem conhecidos há anos, só em Abril de 2021 é que passou a ser
inadmissível que Sócrates viva como um paxá com dinheiro vivo pedido em
código a um amigo que o recebeu aos milhões de vários empresários.
Tenho
curiosidade em saber como é que estes vira-casacas decidem que agora,
exactamente agora, é a altura certa de deixar de dizer: “Isto é uma
vergonhosa campanha negra contra Sócrates!”, para passar a dizer: “Isto é
uma vergonhosa actuação de Sócrates, que devia pintar a cara de preto!”
É uma escolha estratégica, implica acertar no timing em que passa a ser
politicamente mais vantajoso ser visto como tolo que não percebeu, em
vez de como desonesto que nunca quis ver. Gostava de apontar o momento
específico em que a casaca vira e os ex-fãs trocam o papel de acérrimo
defensor pelo de parvinho. No fundo, quando é que saltam de cabala para
burro.
Nos
últimos dias, vários militantes do PS têm vindo renegar o antigo Menino
de Ouro. Mas ainda faltam bastantes. Continua muita gente a recitar a
lengalenga do “à Justiça o que é da Justiça” quando, na verdade, há
muita coisa que se pode dizer sobre as acções de José Sócrates sem
interferir nos direitos de propriedade da Justiça. Não admira que a
Justiça seja lenta e pesadona: empanturram-na à força com coisas que não
são dela, pertencem ao mero senso comum, à constatação de factos e ao
olfacto. O pivete a esturro tresanda, não se consegue disfarçar com
Brise Lavandaria.
Mas
compreendo o choque dos socialistas que sempre apoiaram Sócrates,
principalmente os que fizeram parte dos seus governos. Coitados. Neste
momento, estão a pensar que é grande a hipótese de que tudo o que foi
feito na governação de Sócrates esteja manchado pela corrupção. Mesmo
nas decisões que têm uma bondade evidente, como a reabilitação das
escolas, deve ter havido falcatrua. É provável que todas as medidas
tomadas por Sócrates tenham tido como causa, não o interesse público,
mas o seu próprio interesse. Como um mafioso que leva 10% de qualquer
transação comercial que se realiza no seu bairro, Sócrates pode ter
metido ao bolso uma percentagem de todo o dinheiro que o Estado fez
circular entre 2005 e 2011. E uma coisa é um comissário político, isso
os socialistas até gostam; outra é um comissionista político.
A
sofreguidão terá sido tão grande que, até em medidas que não envolvem
negócios e que têm uma dignidade inegável, como a legalização do
casamento entre pessoas do mesmo sexo, Sócrates há-de ter inventado uma
forma de lucrar. O meu palpite é que Santos Silva tinha uma banda de
covers dos ABBA e ainda se fartou de ganhar dinheiro a cantar o “Dancing
Queen” em bodas gay. Sócrates é pessoa para ter transformado uma causa
fracturante numa causa facturante. Aquela pianada do início deve
soar-lhe a caixa registadora.
Mas
voltemos aos êxitos socráticos de antanho. Hoje, hesitei entre trazer
um apanhado das pressões de Sócrates à comunicação social, um pot-pourri
que incluísse telefonemas de madrugada a jornalistas e tentativas de
comprar cadeias de televisão para silenciar noticiários, ou trazer o
caso da visita intimidatória da polícia ao Sindicato de Professores da
Região Centro, na Covilhã, na véspera da manifestação num evento em que
Sócrates ia estar presente. Qualquer um é Sócrates vintage, mas optei
antes por relembrar o incidente com Chico Buarque.
Em
Maio de 2010, estando José Sócrates em visita oficial ao Brasil, foi
noticiado que Chico Buarque teria pedido a Lula da Silva para conhecer o
Primeiro-Ministro português. Como seria de esperar, a cultura pátria
até soltou umas culturais pinguinhas de xixi, tal o entusiasmo suscitado
pelo prestígio. Pois se Chico Buarque, artista maior da língua
portuguesa, desejava ser apresentado a José Sócrates, o intrépido
governante! Infelizmente, tratava-se de patranha socrática. A realidade,
como em tudo o que mete Sócrates, era precisamente ao contrário:
Sócrates é que queria conhecer o cantor brasileiro e tinha pedinchado a
Lula um encontro. O que não teria mal nenhum, até seria normal –
Sócrates saberia que declarar-se admirador de Chico Buarque ia cair bem
junto aos apaniguados da nossa esquerda intelectual. Sucede que, não lhe
chegando o aperto de mão e o autógrafo, Sócrates mandou dizer à pátria
que o músico é que almejava privar com ele.
Chico
Buarque, entretanto, recebera educadamente Sócrates em sua casa,
acompanhado por um fotógrafo que registou o momento para a posteridade –
ou, caso Sócrates tivesse levado a sua avante, para a impostoridade.
Quando perguntaram a Chico Buarque se já tinha recuperado a visão ou se
ainda estava encandeado pelo brilho de José Sócrates, o músico indignou-se e desmentiu o embuste.
Aposto
que Chico Buarque está arrependido. Se soubesse o que se sabe hoje, não
só teria mesmo querido que Sócrates fosse lá a casa, como teria
insistido para que ficasse hospedado um mês. Conviver com o PM português
ia ajudá-lo criativamente. Sócrates iria inspirar as sequelas “Nova
Ópera do Malandro”, “Ópera do Malandro – O Regresso” e “Ainda Mais
Ópera, Ainda Mais Malandro”. Sócrates, o muso da aldrabice, o homem que
não só mente com os dentes que tem, mas também com os dentes do amigo.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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