Se tomarmos como correta a decisão do juiz Ivo Rosa, então podemos esquecer o combate à corrupção, pois nunca os seus critérios sentarão um corrupto no banco dos réus. É isso que está em causa. Artigo de José Manuel Fernandes, publisher do Observador:
Aviso
desde já os meus leitores que não sou jurista, não estou interessado em
discutir leis e acho que esta é a pior altura para falarmos dos temas –
para mim quase bizantinos – que têm ocupado magistrados, advogados e
outros doutos tudólugos por estes dias. E faço este aviso porque acho
que não é preciso ser jurista, nem especialmente perspicaz, para
perceber uma coisa elementar, a saber: a maioria dos figurões que estava
acusado na “Operação Marquês” movimentou milhões de euros usando
métodos ínvios e ilegais, isso permitiu financiar o estilo de vida
escandalosamente luxuoso de um ex-primeiro-ministro, pelo meio
realizaram-se negócios em que o país perdeu milhares de milhões de
euros, e apesar de toda a evidência reunida sobre essas actividades um
juiz pôs-se à procura de tudo o que pudesse servir para salvar essa
gente do mínimo dos mínimos, que era terem de responder em tribunal.
E
não, não é verdade que esse juiz tenha “arrasado” a acusação do
Ministério Público, como tantos apressadamente sentenciaram. O que esse
juiz fez foi outra coisa: foi insultar a inteligência e a lógica e
tomar-nos a todos por parvos, ignorantes e, porventura, marcianos que
não vivemos no mesmo país que José Sócrates atirou para uma das maiores
crises de sempre. E fê-lo sem pudor, tomando todas as testemunhas de
defesa como gente credível – apesar da maioria dos nomes que foi citando
serem cúmplices desse ex-primeiro-ministro no louco desvario que levou o
país para a bancarrota –, ao mesmo tempo que desvalorizava todos os
testemunhos incriminatórios.
Querem
um bom exemplo do que afirmo? Já se sabe como é difícil provar um crime
de corrupção: nem o corruptor, nem o corrompido têm interesse em
denunciá-lo. Por isso, quando alguém admite que é intermediário numa
operação destas, passa a ser uma testemunha preciosa. Havia um
testemunho desses no processo: o de Hélder Bataglia, que admitiria ter
sido intermediário numa transação de 12 milhões de euros que circularam
do universo de Ricardo Salgado para as contas Santos Silva/José
Sócrates. O juiz Ivo Rosa reconhece que a operação ocorreu – não tinha
outro remédio, a papelada está todo no processo –, admite que as
explicações da defesa não são consistentes, mas opta por não dar
credibilidade ao testemunho de Bataglia. Ou seja, desqualifica o seu
depoimento para poder salvar Salgado e Sócrates.
Querem
outro exemplo? Na avaliação da prova sobre a interferência ou não de
Sócrates na OPA da Soneacom sobre a PT, Ivo Rosa optou por desconsiderar
o depoimento do líder da Sonaecom, Paulo Azevedo, para valorizar em
contrapartida os testemunhos de subordinados ou amigos de José Sócrates,
como o socialista Carlos Santos Ferreira, que presidia à Caixa Geral de
Depósitos e depois seria colocado à frente do BCP, e de Armando Vara.
Gente séria, como todos sabemos.
O
mesmo faria com o depoimento de Luís Campos e Cunha, que bastaria
consultar os jornais da época para saber que se demitiu do governo de
Sócrates por causa das pressões para nomear Vara para a CGD, mas de que
Ivo Rosa não quis saber.
Aliás
conforme íamos ouvindo citar as testemunhas a que o juiz dava
credibilidade íamos revivendo um filme de horror – quem não se lembra de
Mário Lino, de Paulo Campos, de Carlos Costa Pina, de Guilherme Dray,
de Celeste Cardona, etc., etc. – e verificando como ele nos queria fazer
crer numa ficção, ou melhor, num conto de fadas: a de que o
primeiro-ministro Sócrates não dava orientações aos seus ministros, nem
aos seus banqueiros, ou que só contactava com os líderes estrangeiros
(Lula da Silva, Chávez…) durante as visitas oficiais. Que tudo era
angelical, que o país não era aquele que todos conhecemos e em que todos
vivemos.
Desde
o primeiro momento – isto é, desde que fez um discurso de abertura
pomposo e arrogante – que se percebeu aquilo que este juiz andou a fazer
nos últimos dois anos: andou a tratar de encontrar todas as formas
possíveis de salvar os dois figurões que mandaram em Portugal nos anos
mais sombrios da nossa democracia — o duopólio Sócrates/Salgado — sem
olhar a meios, sem cuidar da coerência, sem preocupação de escrúpulos.
Basicamente o que Ivo Rosa foi fazendo, e disso nos deu conta ao longo de quase quatro horas, é, e vou citar uma boa síntese
que li por estas horas, que “se existe acusação esta não é válida, se é
válida não há provas, se existem provas, foram obtidas de forma
imprópria, se não foram obtidas de forma imprópria não são suficientes,
se são suficientes o crime já prescreveu”.
A
única coisa que aquela triste figura não conseguiu arredar do meio da
sala foi o elefante que lá estava, ou seja, os milhões que tinham
circulado para o bolso de José Sócrates, os pagamentos em dinheiro, o
apartamento de Paris, os contratos para lhe escreverem o seu famoso
livrinho, a vida de nababo e as ordens secas dados “ao amigo” para lhe
mandar mais envelopes com notas. Ficámos a saber que em três anos e
qualquer coisa o ex-primeiro-ministro derreteu 1.727.398,52 euros desse
seu “amigo” – o que dá uns modestos 43 mil euros por mês – e que isso,
hélas, Ivo Rosa achou estranho.
Construiu
então a partir daí uma nova acusação, segundo a qual José Sócrates, o
homem que nas escutas dá ordens e destrata Carlos Santos Silva, seria
afinal um pau mandado do empresário, por ele tendo sido corrompido,
sucumbindo por “venda da disponibilidade” e “compra da personalidade”.
Mas se se preparavam para aplaudir este momento de lucidez, guardem as
mãos nos bolsos: logo de seguida ficámos a saber que mesmo pronunciando
para julgamento o antigo primeiro-ministro por crimes de branqueamento
de capitais e falsificação de documentos (o que junto ainda pode valer
12 anos de cadeia), o nosso juiz conseguiu arranjar forma de não o
acusar por fraude fiscal. Autoincriminar-se-ia se declarasse os
dinheiros que estava a receber do “amigo”, argumentou. Fantástico
argumento. Ficámos a saber que praticar um crime nos iliba de outro
crime, mesmo quando está em causa a Autoridade Tributária.
Volto
ao princípio: não sou jurista, nem quero ser, mas o que se passou no
Campus da Justiça na sexta-feira dia 9 de Abril de 2021 foi um insulto
ao povo português e um rude golpe nas nossas instituições. E por duas
razões.
Primeiro,
porque aquilo que hoje milhões de portugueses estão a pensar é como é
possível que o sistema da Justiça albergue no seu interior uma víbora
capaz de provocar este dano, para mais sabendo-se que tal figura perdeu
17 recursos nos últimos quatro anos num tribunal superior. O que milhões
de portugueses estão a pensar é que nunca em Portugal os corruptos
serão apanhados e condenados, mesmo quando entra pelos olhos dentro do
mais ignaro que não há explicação para o enriquecimento súbito de certos
poderosos.
Segundo,
porque os portugueses que assim pensam terão razão se a “doutrina Ivo
Rosa” fizer caminho, se para provar a corrupção passar a ser necessário
apanhar o corruptor a entregar o dinheiro ao corrompido, se nenhuma
prova indirecta for admitida, se todas as desculpas dos arguidos tiverem
força de palavra de honra. Pior: para já a galáxia de interesses e
personalidades que gravitava em torno de Sócrates, com Salgado à cabeça
(o DDT, “dono disto tudo”, lembram-se?), escaparam, apesar do rasto dos
milhões que ficaram nas contas da Suíça e nos offshores – o que
significa que escapou o coração do sistema que ele montou. O cutelo da
Justiça cai apenas sobre Carlos Santos Silva, no meio de tudo isto um
pobre diabo, e o desgraçado do motorista Pena, por ter uma arma
proibida.
Não,
isto não é a Justiça a funcionar, isto não é sequer um erro da Justiça.
Isto é mesmo o que parece: um insulto aos portugueses.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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