Diante de tudo isso, a tarefa essencial é recuperar o país chamado Brasil, com o menor número de mortos. Os lideres de Neverlândia eleitoralmente se desmancham com sua própria incompetência. Fernando Gabeira via O Globo:
A
França cortou os voos com o Brasil, e o primeiro-ministro Jean Castex
provocou risos no Parlamento ao falar do uso da hidroxicloroquina por
aqui.
Isso
que chamam de Brasil soa cada vez mais distante para mim. Guardo um
país no escaninho da memória, mas o lugar onde vivo hoje costumo chamar
de Neverlândia.
É
um lugar realmente estapafúrdio, onde um Bolsonaro presidente troca
ideias ao telefone com um senador Kajuru e ameaça dar porradas num
quadro da oposição.
No
final de tudo, o senador Kajuru está sendo processado por uma
apresentadora de TV que ele ofendeu em entrevista, após a conversa com o
presidente. Tudo na verdade parece um enredo televisivo, filmado com a
luz de padaria e um cenário com cores berrantes.
Em
Neverlândia, o presidente incorpora um personagem do programa “Casseta
& Planeta”, chamado Maçaranduba, obcecado por dar porradas.
Em
Neverlândia , o ministro do Meio Ambiente é acusado pela polícia de se
associar a desmatadores para protegê-los da investigação e processo
criminal. Isso jamais aconteceu no país chamado Brasil, agora envolto em
névoa, pairando sobre meus cansados neurônios.
Em
Neverlândia, políticos ainda hesitam em apurar o que acontece, apesar
de mais de 370 mil mortos, de a maioria da população ter fome e de
alguns doentes amarrados na cama, por falta de sedativos e relaxantes
musculares.
Em Neverlândia, um vereador mata um menino a pancadas, e a mãe marca hora com a manicure.
Aquele
país chamado Brasil nunca foi perfeito. Seus orçamentos eram irreais.
Mas, depois que se transformou, surgem ideias como mandar o líder da
Neverlândia para o exterior, para que não o punam pelos crimes fiscais.
A
ideia não vingou, não porque era absurda, mas pelo fato de não ter para
onde ir: as portas do mundo estão fechadas. Não há saída para quem vive
na Neverlândia. A única possibilidade real é buscar de novo aquele país
chamado Brasil, que escapou entre os dedos até se tornar isso que está
aí.
Será
um reencontro difícil. Há muitos Maçarandubas por aí, querendo dar
pancadas. Apenas pelos músculos, não são assim tão perigosos. O problema
é o crescimento do número de armas, um dos pontos básicos na transição
para a Neverlândia.
Para
reencontrar o Brasil, é preciso admitir que a Neverlândia sempre esteve
por aqui, como uma espécie de mais um estado, não um espaço físico da
Federação, mas um estado de espírito.
Nunca conseguiremos mandá-lo integralmente para as terras do nunca mais. O que não é possível é deixar que substitua o Brasil.
Éramos
um país feliz, lembram? Havia energia, criatividade no ar. Era o que
sentiam os que nos visitavam nos tempos de Brasil. A felicidade era,
indiretamente, uma atração turística.
A
pandemia revelou o que sabíamos, mas jamais encaramos de frente, que
são nossas desigualdades. Ao explodir num momento de trevas num governo
de obtusos negacionistas, ela provocou uma tempestade perfeita.
A
sobrevivência de países em momentos históricos excepcionais depende da
capacidade de unir forças, conjugar talentos e vontades.
Quando se trata de um inimigo externo e visível com o estrago de suas bombas, o trabalho de unir é mais fácil.
Estamos
diante de um inimigo invisível, o vírus, e de um adversário interno: a
extrema-direita, que sempre existirá, mas jamais nos representará, pois a
soma dos seus erros e iniquidades nos transfigurou em Neverlândia.
Diante
de tudo isso, a tarefa essencial é recuperar o país chamado Brasil, com
o menor número de mortos. Os lideres de Neverlândia eleitoralmente se
desmancham com sua própria incompetência.
Mas
e os mortos? Na Neverlândia morre mais gente do que nasce. Como
estancar a mortandade e chegar vivo a 2022? É uma pergunta que deveria
ofuscar todas as pequenas questões políticas, ciúmes e rancores que
acabam sendo também uma forma de interiorizar a morte.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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