Os adversários de Moro e da Lava Jato não têm como alegar que a operação infringiu a lei; o que realmente os incomoda é o rigor com que Moro agiu – nada mais que todo o rigor que a lei permitia. Editorial da Gazeta do Povo:
Nesta
quinta-feira, está na pauta do Supremo Tribunal Federal um julgamento
que pode ao menos restaurar um mínimo de dignidade à corte no tratamento
que ela tem dado recentemente ao combate à corrupção, ou pode
aprofundar seu suicídio moral. O plenário analisará se o habeas corpus
que levou à declaração da suspeição de Sergio Moro “perdeu seu objeto”
(ou seja, tornou-se nulo) no momento em que o STF confirmou a anulação
de todas as ações da Lava Jato contra o ex-presidente Lula em Curitiba.
Não
estão em jogo, aqui, os atos propriamente ditos de Moro à frente da
13.ª Vara Federal de Curitiba – embora estejamos certos de que
magistrados insatisfeitos com a Lava Jato os recordarão em seus votos –,
mas uma questão meramente processual: se a extinção de uma ação
judicial leva à extinção subsequente de todos os recursos impetrados
dentro desta ação. A lógica básica leva a concluir que sim, mas a
Segunda Turma já anulou a lógica quando quis julgar a suspeição enquanto
vigorava, mesmo que em caráter liminar, a anulação de todas as ações. O
fato é que, se o plenário da corte não declarar a perda de objeto de
todos os recursos ligados aos processos anulados, estará não apenas
criando uma bizarrice processual – o habeas corpus que permanece vivo
embora a ação dentro do qual ele tenha sido impetrado seja nula –, mas
cometendo uma enorme injustiça contra um magistrado que jamais se portou
da forma abusiva com que seus detratores tentam descrevê-lo.
Moro
foi muito mais que alguém que apenas estava no lugar certo, na hora
certa (como afirmaram, para minimizar seu trabalho, certos bolsonaristas
por ocasião do rompimento do ex-juiz e ex-ministro com o governo
Bolsonaro): era, também, a pessoa certa, dotada das qualidades morais,
da competência técnica e de profundos conhecimentos sobre esquemas de
lavagem de dinheiro, tema no qual tornou-se especialista após assumir,
em 2002, a 2.ª Vara Federal, que depois se tornaria a 13.ª Vara; atuou
em casos como o Banestado e auxiliou a ministra Rosa Weber enquanto o
Supremo julgou o mensalão. E, totalmente consciente do desfecho que
havia tido na Itália a Operação Mãos Limpas, estava disposto a não
deixar que a impunidade prevalecesse quando a Lava Jato chegou às suas
mãos. E aqui é preciso repetir o que já afirmamos em várias outras
ocasiões: pode até haver quem considere ser impossível combater
ladroagem tão intrincada sem cruzar os limites da legalidade uma ou
outra vez, já que do outro lado há gente que não se vê limitada por lei
ou moralidade alguma. Mas não, definitivamente não foi este o caso de
Sergio Moro.
Tanto
foi assim que os atos pelos quais Moro está sendo achincalhado por
ministros como Gilmar Mendes, ou que foram invocados por Cármen Lúcia em
sua surreal mudança de voto na sessão de 23 de março, se deram, no
máximo, dentro daquela zona cinzenta a que também nos referimos em
outras ocasiões, em que são possíveis interpretações diferentes, já que é
impossível ao texto legal prever todas as circunstâncias de sua
aplicação. Os adversários de Moro e da Lava Jato não têm como alegar que
a operação infringiu a lei; o que realmente os incomoda é o rigor com
que Moro agiu – nada mais que todo o rigor que a lei permitia. Algo que
não deveria passar de discordância em questões sujeitas à interpretação e
à discricionariedade do juiz, e que no máximo renderia debates nos
meios de comunicação e em veículos especializados, foi retorcido e
distorcido para ser levado aos tribunais e transformado em “abuso”,
irregularidade ou até mesmo ilegalidade.
Essa
estratégia ganha ares de indignidade ainda maiores quando sabemos que
os adversários de Moro querem construir uma narrativa de “excesso”
sistemático amparados em uma quantidade ínfima de atos, que se pode
contar nos dedos das mãos, quando a verdadeira essência da Lava Jato
está nos milhares de decisões tomadas ao longo de anos e jamais
questionadas. Essas decisões, em sua ampla maioria, foram respaldadas
pelas instâncias superiores – como o TRF4, por exemplo, que confirmou
quase todas as condenações proferidas por Moro, em muitos casos até
mesmo elevando a pena.
Prova
do que afirmamos é o fato de que, para atribuir “abuso” ou “ação
política” a Moro, ou anular seus atos, os ministros do Supremo precisam
ignorar que todas as decisões do juiz tinham amparo na lei,
especialmente a lei processual penal. Foi assim quando a corte anulou
uma condenação ainda do caso Banestado, apesar de os atos questionados
estarem previstos pelo Código de Processo Penal. Foi assim quando a
corte anulou condenações da Lava Jato alegando que corréus delatores e
delatados entregaram alegações finais ao mesmo tempo, o que também é
previsto no CPP – em um dos casos, inclusive, Moro chegou a conceder
prazo adicional a um réu, Márcio Ferreira, ao perceber que as alegações
finais de um delator continham informações novas; a defesa de Ferreira
não quis acrescentar mais nada, e mesmo assim a condenação foi anulada
pelo Supremo.
E
o mesmo pode ser dito dos atos diretamente invocados para se alegar a
suspeição de Moro, como a condução coercitiva de Lula ou o levantamento
do sigilo da delação de Antonio Palocci: tudo estritamente dentro da
lei. Mesmo no caso mais controverso, o da liberação das gravações das
interceptações telefônicas que captaram conversa entre Lula e a então
presidente Dilma Rousseff, anulada por Teori Zavascki, a avaliação
desfavorável a Moro foi feita a posteriori, jamais se podendo atribuir
ao juiz qualquer intenção de desrespeitar a lei – até porque havia
muitos bons motivos, baseados em princípios constitucionais, para a
liberação do conteúdo, que revelou um escancarado desvio de finalidade
na nomeação de Lula para um ministério. Se não fosse assim, as conversas
não teriam sido usadas por (ironia das ironias) Gilmar Mendes para
suspender a nomeação de Lula, um dia depois da cerimônia de posse.
Por
fim, é preciso lembrar ainda que a falsa narrativa da suspeição ganhou
força a partir do fim de 2018, quando Moro aceitou o convite de Jair
Bolsonaro para o Ministério da Justiça. Esta é uma tese tão falaciosa
quanto delirante, que faz uma análise posterior das intenções do até
então juiz federal, como se ele tivesse tomado todas as decisões que
tomou não por estar convencido de que eram corretas, ou por causa das
inúmeras provas existentes contra Lula, mas única e exclusivamente como
parte de um jogo para retirar Lula da disputa presidencial de 2018 e
facilitar a eleição de Bolsonaro, com o ministério servindo de
“recompensa”. Aceitar esse tipo de argumentação seria levar ao extremo a
falácia do post hoc ergo propter hoc, uma falsa relação de causalidade
entre dois acontecimentos que apenas se sucedem no tempo. Em outras
palavras, “se A ocorre antes de B, é porque A é a causa de B”. Além
disso, é uma tese que manieta homens públicos, doravante impedidos de
fazer o que julgam ser o melhor para o país – como, no caso de Moro, a
escolha de deixar a magistratura para se tornar ministro – porque todos
os seus atos passados passariam a ser julgados à luz de suas escolhas
presentes e futuras.
As
escolhas de Moro na condução da Lava Jato jamais foram fáceis, mas
sempre foram feitas tendo em vista o que a legislação lhe permitia fazer
e que ferramentas ela lhe dava para melhor julgar. Que ele tenha
colocado essas ferramentas a serviço do combate à corrupção não tem nada
de abusivo, mas de heroico. Moro foi inspiração e esperança para muitos
brasileiros: o país inteiro foi testemunha da coragem, da dedicação e
da competência do então juiz federal, que soube ser rigoroso sem
desrespeitar prerrogativas dos réus, nem atropelar seu direito de
defesa. Tudo isso mostra a gravidade e a torpeza da desqualificação a
que ele vem sendo submetido. Manter a suspeição do ex-juiz, além da
aberração processual já mencionada, equivale a dizer a todos os demais
juízes deste país que não, eles não podem se mover dentro do que diz a
lei se for para aplicá-la com rigor, pois serão perseguidos por isso.
Alguém que, na magistratura, agiu com integridade será injustamente
sacrificado, mas a injustiça não termina ali: quem quer que deseje fazer
o mesmo ouvirá do Supremo que combater a corrupção no Brasil não
compensa.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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