Coberto de desonra pela vergonhosa retirada do Afeganistão, Mark Milley agora aparece tramando com China pelas costas de um presidente. Vilma Gryzinski:
Parece
diálogo de filme: “General Li, o senhor e eu nos conhecemos há cinco
anos. Se nós formos atacar, eu vou te ligar antes. Não será de
surpresa”.
“General
Li, quero garantir que o governo americano é estável e que tudo vai
ficar bem. Nós não vamos atacar ou conduzir qualquer operação cinética
contra vocês”.
Em linguagem militar, operação cinética equivale a atos de guerra.
O
homem que deu garantias ao atual maior inimigo dos Estados Unidos foi o
general Mark Milley, chefe do estado-maior conjunto das Forças Armadas
americanas – ou seja, o posto mais importante da hierarquia militar.
E seu interlocutor foi o general Li Zuocheng, que ocupa o cargo equivalente no Exército Popular de Libertação da China.
As
duas conversas estão no novo livro de Bob Woodward e Robert Costa sobre
a etapa final do governo de Donald Trump, intitulado Perigo.
Woodward,
da dupla de Watergate, deu vários sinais de que integrava a turma
psicologicamente perturbada pelo ódio acumulado contra Trump, mas os
telefonemas reproduzidos não foram desmentidos. Isso significa que foram
revelados pelo próprio Milley ou por alguém que falou com autorização
dele.
A
tese do livro é que os telefonemas do general ao seu colega/adversário
chinês, completamente contrários à hierarquia, à cadeia de comando e ao
manual de comportamento de um chefe militar, tiveram um objetivo nobre:
desarticular alguma manobra de Trump que envolvesse algo grandioso e
perigosíssimo, como um ataque contra a China, para impedir ou
neutralizar sua derrota na campanha pela reeleição.
É
uma tese duvidosa. Ao contrário do que aparece nos filmes sobre
presidentes, um subgênero do cinema americano, o ocupante da Casa
Branca, embora seja o comandante-chefe das Forças Armadas, não pode
desencadear uma guerra de uma hora para outra, sem o conhecimento e o
consenso, ainda que não unânime, dos civis e militares que formam o
establishment da defesa nacional.
Também não pode “apertar um botão” e desfechar um ataque nuclear a seu bel prazer.
É
claro que para os antitrumpistas, o general, que já havia esperneado
quando Trump levou a cúpula militar para uma caminhada até uma igreja ao
lado da Casa Branca que os manifestantes ligados ao Black Lives Matter
haviam tentando incendiar, teve um comportamento heróico ao neutralizar
preventivamente uma perigosa e alucinada jogada de Trump.
No
campo oposto, dos que se chocaram com a forma como um chefe do
estado-maior conjunto pode se aliar a um adversário chinês, a melhor
reação foi do senador republicano Marco Rubio.
Numa
carta aberta a Joe Biden, ele também usa termos que parecem de cinema,
manifestando “grave preocupação” com a possibilidade de que o general
Milley considerasse a hipótese de “fazer um traiçoeiro vazamento de
informações sigilosas ao Partido Comunista Chinês em antecipação a
conflito armado com a República Popular da China”.
“Estes atos do general Milley demonstram uma clara falta de discernimento e eu o exorto a demiti-lo imediatamente”.
Outro
senador conhecido, o libertário Rand Paul, disse que o general deveria
ser investigado imediatamente e inclusive submetido a um polígrafo, a
máquina da verdade. Se confirmado que tramou com os chineses, deveria
ser levado a corte marcial por traição.
Dá para perceber que é o tipo de assunto capaz de provocar reações extremas,
Trump,
evidentemente, apoiou as críticas e disse que nunca sequer pensou num
ataque contra a China para facilitar sua permanência no poder.
Os
chefes do Estado-Maior Conjunto têm um mandato de quatro anos. Milley
foi nomeado por Trump em 2019. Na época, o New York Times disse que ele
havia conquistado Trump com piadas, conversas amigáveis e disposição a
discutir os preços astronômicos dos armamentos americanos.
Dizia
o Time que o falante general, coroinha na infância, gostava de citar
Santo Agostinho, São Tomás de Aquino e Henry David Thoreau –
provavelmente não para os ouvidos de Trump, onde as provas de erudição
não causariam grande impressão.
A
nova polêmica pega Milley num momento em que a questão da retirada do
Afeganistão começa lentamente a se dissipar. A responsabilidade final
pela retirada – rápida e mal feita, como a piada sobre o lema da
Cavalaria – é de Joe Biden, mas mais de cem generais e almirantes da
reserva pediram a renúncia de Milley e do secretário da Defesa, Lloyd
Austin.
Imaginem
sua reação agora, com a informação de que o chefe do Estado-Maior
Conjunto tramou para desautorizar um presidente pelas costas.
Mesmo
numa democracia pioneira e avançada como a americana, nem sempre é
tranquila a convivência entre generais e os governantes civis.
Em
situações de guerra, os ânimos pegam fogo. Franklin Roosevelt demitiu o
comandante da Frota do Pacífico, almirante James Richardson, por
discordar do acantonamento da frota em Pearl Harbor. Deu no que deu.
Roosevelt também demitiu seu substituto, Husband Kimmel, por falta de
preparo para o devastador ataque japonês.
O
mais famoso militar demitido da história moderna dos Estados Unidos foi
Douglas MacArthur, general cinco estrelas pelo comando na II Guerra. O
ex-contador Harry Truman demitiu o herói de guerra que queria atacar o
território chinês e até criar um cinturão de cobalto radiativo para
impedir o avanço de tropas chinesas sobre a Coreia.
MarArthur tentou contornar a cautela do presidente criando fatos consumados.
O
episódio deixou uma frase famosa de Truman: “Eu demiti MacArthur porque
não respeitava a autoridade do presidente. Eu não o demiti por ser um
imbecil filho da ****, embora ele seja”.
Barack
Obama demitiu dois comandantes de operações no Afeganistão, incluindo o
brilhante e adorado general Stanley McChrystal, por uma reportagem em
que ele e seus próximos deixavam entrever uma atitude nada respeitosa em
relação ao presidente e seu vice, Joe Biden.
Obama
não precisou demitir outro general legendário, David Petraeus, que era
diretor da CIA, porque o próprio pediu para sair depois que veio à tona
seu caso com uma tenente-coronel bonitona, Paula Broadwell, que escreveu
sua biografia e a quem ele deu enorme quantidade de material sigiloso.
É
claro que Joe Biden não vai demitir o general Mark Milley. Ao
contrário, está numa posição em que precisa elogiar seu desempenho, ao
qual se ligou intimamente.
A oposição republicana vai espernear, mas não tem poder para atingi-lo.
Milley só será julgado no tribunal da sua consciência.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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