O auditor do TCU Alexandre Silva Marques , criador de um documento paralelo que falseia os números de mortes por Covid, enreda Jair Bolsonaro numa possível planejada para aliviar a barra do presidente na CPI. Sérgio Pardelas e Helena Mader para a Crusoé:
De
manhã cedo, Jair Bolsonaro cultiva o hábito de participar de uma
conversa com uma claque de apoiadores em frente ao Palácio da Alvorada.
Não foi diferente na manhã de segunda-feira, 7, exceto pela gravidade da
revelação. Em tom de regozijo, o presidente afirmou que um relatório do
Tribunal de Contas da União, o TCU, ainda não divulgado, mostraria que
metade das mortes por Covid-19 registradas no ano passado teriam, na
realidade, outras causas. Bolsonaro foi além: disse que já havia
repassado o documento “para três jornalistas” com quem ele “conversa” e
que “à tarde” ele seria divulgado – menos pela imprensa tradicional,
que, segundo ele, não iria dar trela para o material. “Está muito bem
fundamentado, todo mundo vai entender, só jornalista não vai entender”,
completou.
Embora
tenha virado costume naturalizar atos e declarações absurdas de
Bolsonaro, as palavras do presidente não só são revestidas de enorme
peso institucional como geram consequências para o país e para si
próprio – ou ao menos deveriam gerar. Nesse caso específico, o
presidente pode ter feito ali a confissão de um crime, a depender do
desenrolar da investigação já em curso pelo TCU, pela CPI da Covid no
Senado e do desenlace de uma possível apuração pela Polícia Federal.
Conforme
revelou Crusoé com exclusividade na terça-feira, 8, o documento ao qual
o presidente se referiu, intitulado “Da possível supernotificação de
óbitos causados por Covid” , foi produzido pelo auditor – agora afastado
— do TCU Alexandre Figueiredo Costa Silva Marques e inserido por ele
num sistema interno dos servidores da corte às 18h39 do domingo, 6. Ou
seja, horas antes de Bolsonaro alardear ter o material em mãos e
repassado a “três jornalistas”.
O
documento dizia, com base numa oscilação da variação média de óbitos
entre 2019 e 2020, que “isso pode ser um indício de que a pandemia
causou efetivamente cerca de 80 mil óbitos em 2020, 41% dos quase 195
mil óbitos registrados pelas secretarias estaduais de saúde como
decorrentes da Covid-19. Os outros 115 mil óbitos apontados como
consequências da pandemia podem ter, na verdade, outras causas mortis”.
Lançar
uma cortina de fumaça sobre o número real de óbitos por Covid no país
seria mais do que conveniente à narrativa de um presidente fustigado por
uma CPI e cuja popularidade derrete. Ocorre que, embora Bolsonaro tenha
tentado conferir ao relatório ares de documento oficial do TCU, o
material é uma mistureba de análises pessoais do auditor com trechos de
um acórdão do tribunal que versava sobre critérios para transferência de
recursos aos estados, com base em dados de óbitos por Covid declarados
pelas Secretarias Estaduais de Saúde. A montagem jamais foi chancelada
pela corte, conforme o TCU afirmou e reiterou ao longo da semana ao
menos três vezes. É aí que as coisas começam a se complicar para
Bolsonaro.
O
presidente pode até fingir não entender qual é a natureza da função que
exerce e para a qual foi escolhido pelos eleitores, mas é de praxe que
qualquer denúncia que ele receba – e ali continha uma acusação grave,
qual seja: a de que secretarias estaduais poderiam estar superestimando o
número de mortes por Covid – deve ser submetida, num primeiro momento,
para análise da subchefia de assuntos jurídicos da Casa Civil. E,
eventualmente, encaminhada ao Ministério da Justiça ou à
Controladoria-Geral da União para tomada de providências cabíveis. Sob
pena de o mandatário responder por crime de prevaricação.
Bolsonaro
preferiu correr, no entanto, para fazer uso político do material, a fim
de falsear os dados de mortes por Covid e aliviar a sua situação na
CPI, cujos trabalhos já mostram a sua imensa responsabilidade sobre a
tragédia da pandemia que já ceifou a vida de 480 mil brasileiros. Na
quarta-feira, 9, depois da sequência de desmentidos do tribunal, o
presidente disse que “apenas” se “equivocou” ao ter trocado o termo
“acórdão por tabela”. Na sequência, admitiu que a “tabela” havia sido
produzida, veja só, “por gente que está ao meu lado”. Ou seja, Bolsonaro
fez ali uma nova confissão.
Diante
dessa paisagem enfumaçada, é fundamental que as investigações
reconstituam o que ocorreu entre as 18h39 de domingo, 6, ou seja, o
momento em que o auditor agora afastado do TCU inseriu o texto de sua
autoria num sistema interno de auditores do tribunal, e a manhã de
segunda-feira, 7, quando Bolsonaro reconheceu ter remetido o “relatório
paralelo” a seus amigos na imprensa, para ser publicado “à tarde”. De
acordo com o que apurou Crusoé, Bolsonaro, ao menos naquele momento com a
sua claque, não bravateou. O texto realmente foi parar nas mãos de um
repórter do site R7 – o portal pertence à Igreja Universal do Reino de
Deus, hoje apoiadora de primeira hora do presidente. Às 14h53 daquele
mesmo dia, o texto contendo trechos do relatório confeccionado pelo
auditor do TCU estava no ar. O repórter autor da matéria diz que recebeu
o documento de “fontes do Palácio do Planalto”.
Nesta
quinta-feira, 10, a CPI da Covid aprovou requerimento pedindo o
levantamento dos sigilos do auditor Alexandre Silva Marques. A quebra
dos sigilos telefônico e telemático do servidor afastado do TCU
contribuirá para elucidar como o documento chegou às mãos do presidente.
Se ficar comprovado que Bolsonaro sabia que estava recebendo e
repassando a terceiros o produto de um crime cometido pelo auditor, o
presidente pode incorrer em crime de responsabilidade passível de
impeachment, segundo especialistas ouvidos por Crusoé. Agora, caso ele
esteja envolvido de alguma maneira na produção do relatório paralelo,
além do crime de responsabilidade, Bolsonaro pode ser enquadrado no
Artigo 297 do Código Penal, que trata da falsificação de documento
público. A pena prevista é de dois a seis anos de reclusão e multa. Se o
agente é funcionário público e comete o crime prevalecendo-se do cargo,
o que é indiscutível no caso do auditor, a pena pode ser aumentada em
um sexto. É preciso investigar se Alexandre Silva Marques obedeceu
ordens.
No
escândalo dos aloprados do PT, em 2006, petistas foram presos pela PF
num hotel de São Paulo, com o equivalente a mais de 1,7 milhão de reais
em espécie. O dinheiro era para comprar um dossiê falso contra José
Serra, que concorria contra Aloizio Mercadante ao governo de São Paulo. À
época, Lula se apressou em dizer que não tinha nada a ver com aquilo,
que se tratava de “um bando de aloprados”. Bolsonaro não atribuiu a
culpa ao auditor. Pelo contrário, confessou, como se estivesse falando
sobre algo corriqueiro e absolutamente normal, que o material foi
produzido por “gente que está ao meu lado”.
O
perfil do servidor afastado do TCU revela que, de fato, pode haver algo
de muito mais podre na história – como restou comprovado no episódio
petista. O histórico mostra que Alexandre Figueiredo Costa Silva Marques
não é um mero funcionário da corte de contas. Ele tem costas quentes.
Na verdade, quentíssimas. Há um episódio, em especial, que causa
espécie. Em 2019, Alexandre Silva Marques foi convidado pelo BNDES para
assumir a diretoria de compliance. A instituição é presidida por Gustavo
Montezano, amigo pessoal de Eduardo Bolsonaro, filho 03 do presidente, a
quem Silva Marques também seria ligado.
Crusoé
apurou que Montezano fazia questão de tê-lo como quadro do banco, por
se tratar de uma pessoa de sua inteira confiança. Acontece que uma
resolução do TCU, de 1989, veda a cessão de servidores para atuar no
Executivo, a fim de evitar conflitos de interesse. As liberações são
excepcionais e devem ser autorizadas pela presidência do tribunal. Após
uma sinalização de que a autorização seria negada, o próprio presidente
Bolsonaro ligou para o então presidente do TCU, José Múcio Monteiro,
para pressionar pela liberação do auditor. Foi exatamente o que você
leu. Um presidente da República telefonou para a autoridade máxima do
TCU, pedindo para que um auditor do tribunal fosse liberado para outro
órgão federal. A inciativa incomum de Bolsonaro pode ajudar a puxar o
fio do novelo que leva à origem da nova operação aloprada, envolvendo a
confecção de um documento não oficial, feito sob medida para atender a
conveniências do presidente.
Morador
de Jundiaí desde 2015, mas dono de imóveis em Brasília, Alexandre Silva
Marques, de 42 anos, diz em seu currículo que é primeiro-tenente
fuzileiro naval reserva da Marinha. Em sua página do Facebook, ele
costuma divulgar vídeos e posts onde expõe suas opiniões políticas. Não
raro, endossa as teses esgrimidas pelo governo federal, como a defesa do
tratamento precoce. Numa das postagens de 23 de dezembro de 2020,
recorreu a um léxico bem conhecido do bolsonarismo ao comentar que
prefeitos da Baixada Santista iam manter o comércio aberto, contrariando
a determinação do governador de São Paulo, João Doria, a quem ele se
referiu como “gestor de Miami”. “Chega de autoritarismo calça justa”,
afirmou. Desde março, o auditor ocupava o cargo de supervisor do Núcleo
de Supervisão para o Aprimoramento das Atividades de Controle Externo,
cujo salário é de 35 mil reais. O cargo não existia até o final de 2020,
quando foi criado pelo TCU. Segundo integrantes da corte, a função da
vaga é dar suporte a todas as auditorias realizadas pela corte.
Durante
a semana, antes de ser anunciado o seu afastamento do TCU por 60 dias,
por ordem da presidente do tribunal, Ana Arraes, razão pela qual o
auditor não poderá mais acessar os sistemas do tribunal e nem mesmo
entrar no prédio da corte, ele cometeu uma inconfidência que adiciona
novos elementos à trama. Apesar da clara tentativa de Alexandre Silva
Marques se livrar de um processo, a revelação pode ter o condão de
complicá-lo ainda mais e encalacrar o presidente da República. Ele disse
a seus superiores no TCU que comentou o conteúdo de suas análises
pessoais com seu pai, Ricardo Silva Marques, a quem, segundo o auditor,
coube entregar o texto ao presidente.
O
terceiro personagem da história, como revelou Crusoé na quarta-feira,
9, é coronel da reserva e gerente executivo de Inteligência e Segurança
da Petrobras, cargo que ocupa por indicação de Jair Bolsonaro desde
2019, mesmo ano em que seu filho foi indicado ao BNDES. Bolsonaro e o
pai do auditor afastado do TCU nutrem relação de longa data: em 1977,
foram colegas na Academia Militar das Agulhas Negras, a Aman. Desde que
assumiu o posto de terceiro escalão na estatal, Ricardo Silva Marques se
tornou habitué da cúpula do Poder Executivo, com visitas frequentes ao
gabinete de Bolsonaro. Marques chegou a ser recebido por Bolsonaro no
Palácio da Alvorada em uma manhã de sexta-feira, às vésperas do Ano
Novo, em 2019. Em novembro de 2020, o pai do auditor afastado foi
escalado para compor um comitê do Planalto para examinar a segurança de
infraestruturas críticas do país, coordenada pelo Gabinete de Segurança
Institucional, comandado por Augusto Heleno.
Confirmada
a versão de Alexandre Silva Marques de que o seu pai levou o material
que ele mesmo produziu a Bolsonaro, restaria saber até que ponto vai a
participação do presidente na trama para produzir um documento apócrifo,
mas com ares de oficial, confeccionado com o claro propósito de
alimentar a mentira sobre o número de óbitos por Covid.
A
presidente do TCU, Ana Arraes, determinou o afastamento preventivo do
auditor na quarta-feira, 9. A ministra abriu processo administrativo
disciplinar contra o servidor e também pediu à Polícia Federal que
investigue a conduta de Alexandre. Arraes atendeu às sugestões do
corregedor do tribunal, Bruno Dantas. Em um despacho publicado na
quarta, Dantas revelou a “perplexidade geral” causada pelas declarações
de Bolsonaro e disse que “as revelações apontam fatos que, se
comprovados, se revestem de extrema gravidade, na medida em que, além da
possível infração disciplinar, atingem de maneira severa a
credibilidade e a imagem institucional do Tribunal de Contas da União”.
Caberá à PF investigar o caso e decidir se o indicia ou não. A dúvida é
se a Polícia Federal, hoje controlada por Paulo Maiurino, ousará apontar
a lupa para Bolsonaro. De todo modo, a CPI, com os sigilos do auditor
aloprado em mãos, terá a obrigação de cumprir esse papel.
Com reportagem de André Spigariol e Luiz Vassallo
BLOG ORLANDO TAMBOSI
Nenhum comentário:
Postar um comentário