Os mais otimistas abrem a garrafa de champanhe quando o pertencimento a uma religião tradicional declina. Via FSP, a coluna semanal de João Pereira Coutinho:
Leio Andrew Sullivan
na Spectator, que traz uma novidade sísmica: segundo estudo da Gallup,
os americanos já não são majoritariamente religiosos. Na virada do
milênio, 70% afirmavam que tinham uma ligação a uma igreja, uma
mesquita, uma sinagoga. Hoje?
Apenas 47% (e, entre os “millennials”, 36%). Isso significa que a religião desapareceu da alma dos americanos?
Não desapareceu, defende Sullivan: essa vontade de sentido e pertencimento apenas se moveu para a arena política.
Qualquer
pessoa que escute um admirador de Trump ou um seguidor da “wokeness”
sabe que não está apenas na presença de um ideólogo; está na presença de
um crente, com seus rituais e dogmas —e uma visão dicotômica do mundo
entre o sagrado e o profano.
Existem, porém, duas diferenças entre os novos e os velhos crentes.
A
primeira, notada por Sullivan, é a ausência do elemento transcendente,
que na religião tradicional sempre ajudava a redimir a vida terrena. O
que talvez explique a urgência com que os novos crentes querem refazer o
mundo, aqui e agora.
A
segunda, para mim mais importante, é que os novos crentes não se veem a
eles próprios como portadores de pecado. Pelo contrário: já partem de
uma posição de beatitude, ou até de santidade, para condenarem a manada
ao redor.
Nada
disso é original e o passado serve de exemplo. Um mundo sem religião
será necessariamente melhor —mais pacífico e tolerante?
Não
houve “philosophe” do século 18 que não tenha respondido
afirmativamente. Quando a razão conquistar as trevas religiosas, os
homens estarão libertos da superstição e do erro.
Nem todos compraram o otimismo iluminista. E alguns, como Edmund Burke ou Alexis de Tocqueville,
formularam a questão fatal: se os homens deixam de acreditar em Deus, a
necessidade de crença desaparece? Ou, hipótese mais provável, essa
necessidade será preenchida por outras formas de religiosidade que podem
ser mais letais do que a crença tradicional?
A
história emitiu a sua sentença: a folha de serviço das religiões tem
páginas medonhas, sem dúvida, mas as “religiões seculares” que as
substituíram —o jacobinismo, o comunismo, o fascismo, o nazismo et
cetera— elevaram a parada até o cume do desespero.
Pois
é: não somos apenas “animais sociais”, como dizia o filósofo. Também
somos “animais religiosos”, que procuram continuamente fontes de sentido
e de expiação.
E não houve tirano que não tenha percebido e explorado essa faceta dos seres humanos.
Na
Revolução Francesa, Robespierre não se limitou a guilhotinar os
inimigos (reais ou imaginários) que se opunham ao governo dos jacobinos.
Também teve de promover um estranho culto do ser supremo, com a razão como deusa, para manipular as almas órfãs do catolicismo.
Na União Soviética, os bolcheviques foram rápidos a substituir as imagens do Cristo Pantocrator por retratos de Marx, o novo deus da igreja comunista. E os nazistas, como bem notou Raymond Aron, mimetizaram na perfeição os cultos religiosos de massas, como se pode ver nos documentários de Leni Riefenstahl.
Quando o pertencimento a uma religião tradicional declina, os mais otimistas abrem a garrafa de champanhe. São discípulos de John Lennon (e da sua reza, “Imagine”).
Eu,
fatalmente cético, pergunto qual será a religião substituta que essas
almas vão escolher. Que dogmas serão defendidos? Que rituais serão
encenados? Que hereges serão perseguidos (e “cancelados”)?
O
radicalismo político dos últimos anos, sobretudo nos Estados Unidos,
não é apenas um fenômeno cultural. É um fenômeno religioso, alimentado
pela fúria dos novos convertidos. E não vai parar.
P.S. Quem conhecia intimamente a natureza dessas “religiões seculares” era o filósofo Antonio Paim, morto recentemente. O Brasil perdeu um dos seus maiores pensadores.
Conheci-o
anos atrás, quando foi professor convidado da Universidade Católica
Portuguesa, em Lisboa. Lembro as nossas conversas, divertidas e
memoráveis, sobre os seus tempos na União Soviética, quando ele era
ainda um crente dessa igreja. Mas lembro sobretudo a sua erudição, capaz
de discorrer sobre a história das ideias políticas com uma naturalidade
que arrepiava.
Que
livros nos deixa? Felizmente, bastantes. Mas, para início de conversa,
aconselho dois: “História das Ideias Filosóficas no Brasil” e “A Querela
do Estatismo”, obra imprescindível para entender o Brasil (e também
Portugal).
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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