MEDIÇÃO DE TERRA

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MEDIÇÃO DE TERRAS

segunda-feira, 3 de maio de 2021

Um mundo sem religião não é necessariamente mais pacífico ou tolerante

 



Os mais otimistas abrem a garrafa de champanhe quando o pertencimento a uma religião tradicional declina. Via FSP, a coluna semanal de João Pereira Coutinho:


Leio Andrew Sullivan na Spectator, que traz uma novidade sísmica: segundo estudo da Gallup, os americanos já não são majoritariamente religiosos. Na virada do milênio, 70% afirmavam que tinham uma ligação a uma igreja, uma mesquita, uma sinagoga. Hoje?

Apenas 47% (e, entre os “millennials”, 36%). Isso significa que a religião desapareceu da alma dos americanos?

Não desapareceu, defende Sullivan: essa vontade de sentido e pertencimento apenas se moveu para a arena política.

Qualquer pessoa que escute um admirador de Trump ou um seguidor da “wokeness” sabe que não está apenas na presença de um ideólogo; está na presença de um crente, com seus rituais e dogmas —e uma visão dicotômica do mundo entre o sagrado e o profano.

Existem, porém, duas diferenças entre os novos e os velhos crentes.

A primeira, notada por Sullivan, é a ausência do elemento transcendente, que na religião tradicional sempre ajudava a redimir a vida terrena. O que talvez explique a urgência com que os novos crentes querem refazer o mundo, aqui e agora.

A segunda, para mim mais importante, é que os novos crentes não se veem a eles próprios como portadores de pecado. Pelo contrário: já partem de uma posição de beatitude, ou até de santidade, para condenarem a manada ao redor.

Nada disso é original e o passado serve de exemplo. Um mundo sem religião será necessariamente melhor —mais pacífico e tolerante?

Não houve “philosophe” do século 18 que não tenha respondido afirmativamente. Quando a razão conquistar as trevas religiosas, os homens estarão libertos da superstição e do erro.

Nem todos compraram o otimismo iluminista. E alguns, como Edmund Burke ou Alexis de Tocqueville, formularam a questão fatal: se os homens deixam de acreditar em Deus, a necessidade de crença desaparece? Ou, hipótese mais provável, essa necessidade será preenchida por outras formas de religiosidade que podem ser mais letais do que a crença tradicional?

A história emitiu a sua sentença: a folha de serviço das religiões tem páginas medonhas, sem dúvida, mas as “religiões seculares” que as substituíram —o jacobinismo, o comunismo, o fascismo, o nazismo et cetera— elevaram a parada até o cume do desespero.

Pois é: não somos apenas “animais sociais”, como dizia o filósofo. Também somos “animais religiosos”, que procuram continuamente fontes de sentido e de expiação.

E não houve tirano que não tenha percebido e explorado essa faceta dos seres humanos.

Na Revolução Francesa, Robespierre não se limitou a guilhotinar os inimigos (reais ou imaginários) que se opunham ao governo dos jacobinos. Também teve de promover um estranho culto do ser supremo, com a razão como deusa, para manipular as almas órfãs do catolicismo.

Na União Soviética, os bolcheviques foram rápidos a substituir as imagens do Cristo Pantocrator por retratos de Marx, o novo deus da igreja comunista. E os nazistas, como bem notou Raymond Aron, mimetizaram na perfeição os cultos religiosos de massas, como se pode ver nos documentários de Leni Riefenstahl.
Quando o pertencimento a uma religião tradicional declina, os mais otimistas abrem a garrafa de champanhe. São discípulos de John Lennon (e da sua reza, “Imagine”).

Eu, fatalmente cético, pergunto qual será a religião substituta que essas almas vão escolher. Que dogmas serão defendidos? Que rituais serão encenados? Que hereges serão perseguidos (e “cancelados”)?

O radicalismo político dos últimos anos, sobretudo nos Estados Unidos, não é apenas um fenômeno cultural. É um fenômeno religioso, alimentado pela fúria dos novos convertidos. E não vai parar.

P.S. Quem conhecia intimamente a natureza dessas “religiões seculares” era o filósofo Antonio Paim, morto recentemente. O Brasil perdeu um dos seus maiores pensadores.

Conheci-o anos atrás, quando foi professor convidado da Universidade Católica Portuguesa, em Lisboa. Lembro as nossas conversas, divertidas e memoráveis, sobre os seus tempos na União Soviética, quando ele era ainda um crente dessa igreja. Mas lembro sobretudo a sua erudição, capaz de discorrer sobre a história das ideias políticas com uma naturalidade que arrepiava.

Que livros nos deixa? Felizmente, bastantes. Mas, para início de conversa, aconselho dois: “História das Ideias Filosóficas no Brasil” e “A Querela do Estatismo”, obra imprescindível para entender o Brasil (e também Portugal).
 
BLOG  ORLANDO  TAMBOSI

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