Bela Megale, Aguirre Talento e Thiago Bronzatto
O Globo
No final de 2020, o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Gilmar Mendes recebeu em seu gabinete o general Eduardo Pazuello, então ministro da Saúde. O tema da reunião era a obrigatoriedade da vacinação, que seria votada no plenário da Corte. Durante o encontro, Pazuello citou as exigências da farmacêutica americana Pfizer para vender o imunizante ao Brasil. Na conversa informal, Gilmar afirmou que vários países estavam fechando contratos com a farmacêutica e que não via “grandes obstáculos” na negociação.
Depois, foi a vez de Fabio Wajngarten, ex-secretário da Comunicação da Presidência, procurar o ministro do STF. A postura, porém, foi oposta à do general. Wajngarten se queixou da burocracia para comprar o imunizante — e, num segundo momento, passou a defender também a vacina russa Sputnik V.
No início da pandemia, o
senhor afirmou que o Exército estava se associando a um “genocídio”. O
general Eduardo Pazuello, que comandava o Ministério da Saúde, só foi
substituído após 400 mil mortes pela Covid-19. Como o senhor avalia o
resultado do governo?
Eu tinha a expectativa de que, eleito presidente,
Bolsonaro iria se utilizar dos militares, porque ele é egresso das
Forças Armadas. Cada presidente tem uma certa cultura administrativa que
prioriza determinadas categorias. Os militares têm um distintivo de
organização e de competência em variadas áreas. Não obstante, acho que a
questão da Saúde se revelou problemática, e o resultado foi péssimo
para o Brasil. Acho difícil alguém dizer que essa gestão tenha sido boa
ou positiva, e certamente não foi boa para a própria imagem de
eficiência, competência desses segmentos técnicos das Forças Armadas.
Acho que até a palavra “logística” se tornou uma maldição. “Especialista
em logística” se tornou um palavrão.
O presidente tem afirmado
que as falhas na pandemia não são culpa dele, porque o STF deu a
atribuição a estados e municípios para tomar medidas de combate à
Covid-19. Isso é verdade?
Essa é uma abordagem parcial do fenômeno. O que o tribunal
tem dito é que, diante do quadro da pandemia, estados e municípios
teriam a primazia de definir medidas de isolamento social para evitar a
falta de leitos. É claro que também se percebeu que, na ausência de uma
ação e coordenação da União, os estados e municípios poderiam tomar essa
deliberação. Nunca se excluiu a União desse processo. Se houve a
exclusão, foi uma autoexclusão.
O senhor foi procurado pelo
ex-secretário Wajngarten para falar sobre as negociações do governo
para comprar as vacinas da Pfizer?
Ele não se limitou a falar sobre a Pfizer. Mais de uma vez
ele esteve no meu gabinete. Antes dele já tinham estado aqui o então
ministro Pazuello com o ministro José Levi (ex-advogado-geral da União).
Foi quando iríamos julgar o caso da vacinação obrigatória. Pazuello
tinha falado das dificuldades que havia no contrato com a Pfizer, as
exigências da arbitragem ou a exigência de que eles não fossem
responsabilizados no Brasil. Depois, Wajngarten fez a mesma ponderação,
só que em sentido contrário, dizendo: “Todos os países estão assinando
esse acordo, por que que nós não estamos?”. Ele se queixou da
burocracia. Numa segunda vez ele esteve aqui, mas já não falava da
Pfizer, mas sim da Sputnik. Ele pareceu ansioso como cidadão e como
integrante do governo. Ficam sempre atribuindo a mim mais influência do
que eu propriamente tenho, né? (Ele veio) mais a guisa de pedir
aconselhamento: “Ah, o senhor podia conversar com a AGU. Isso precisa
ser agilizado”. A mim me pareceu que ele estava preocupado que se
deflagrasse o processo (de vacinação).
Wajngarten se queixou da morosidade de Pazuello?
Não, não falou especificamente, se queixava de que a
burocracia estava travada com esses argumentos de que o contrato não
podia ser assinado. Eu também disse isso ao ministro (Pazuello), que
outros países já tinham celebrado contratos talvez semelhantes.
O senhor tranquilizou Pazuello em relação à segurança jurídica do contrato com a Pfizer?
Eu entendi que não seria por aí o grande obstáculo. Ele
veio um pouco antes do julgamento da ação sobre a obrigatoriedade da
vacina.
O senhor esteve
recentemente com o presidente Bolsonaro num encontro, fora da agenda, no
Palácio da Alvorada. Qual foi o tema da conversa?
A questão da Saúde, a gravidade, o estado de pânico das
pessoas. Temos conversas muito francas e cordiais dos dois lados. Ele se
queixa do tribunal, das decisões. Diz que o isolamento leva a
desemprego. Eu explico, porque entendo que é uma forma de contribuir num
momento muito grave. Dizer que o presidente segue (os conselhos), não
vou dizer. Mas me ouve com paciência. E eu também o ouço e considero as
suas preocupações. Falei com ele, com muitas sinceridades sobre o
equívoco dessa abordagem em relação à decisão do STF. Nunca decidimos
que a União estava excluída desse processo.
Há um discurso capitaneado
pelo presidente de defesa do voto impresso. O senhor avalia que
Bolsonaro prepara terreno para não aceitar o resultado da eleição?
O presidente já falou comigo sobre isso e disse que tinha
certeza de que o Aécio Neves tinha vencido as eleições de 2014 e que ele
ganhou no primeiro turno as eleições em 2018. Eu disse: “Presidente, eu
estava no TSE em 2014 e acompanhei as eleições, e o Aécio perdeu ao se
descuidar (do eleitorado) de Minas Gerais”. Ali houve um episódio que
foi uma decisão do próprio colegiado do TSE, de retardar a divulgação da
apuração por conta do horário do Acre. Isso gerou essa lenda urbana. Se
nós olharmos as eleições agora, quem que elegeria, por exemplo, os
deputados Daniel Silveira (PSL-RJ) e Hélio Negão (PSL-RJ)? Teve fraude
para eleger essa bancada enorme do PSL? Todos nós sabemos da lisura
desse processo.
O presidente disse que queria ter uma pessoa terrivelmente evangélica no Supremo. A Corte carece de um membro com esse perfil?
Vocês acompanharam por exemplo as indicações do (Donald)
Trump nos Estados Unidos, que buscou pessoas de perfil conservador. Lá,
teve um debate muito aceso sobre algumas questões ligadas a direitos
fundamentais como, por exemplo, o aborto. Os conservadores querem mudar
esse tema na Suprema Corte. Talvez nós estejamos fazendo algo
assemelhado. Não podemos desprezar o significado da própria eleição do
presidente (Bolsonaro) pelos grupos evangélicos, para os quais o
presidente talvez esteja direcionando esse tipo de mensagem. Eu
obviamente respeito essa opção e tenho também todo respeito pelas
diversas religiões que existem no país, mas acho que é fundamental que
se escolha alguém que seja terrivelmente defensor da Constituição.
O senhor considera que a imagem do STF melhorou perante a sociedade?
Dependendo do tema, podemos ser aplaudidos por um grupo e
atacados por outro. Mas eu acho que quem avaliar com isenção o que o
tribunal fez nessa crise da pandemia certamente vai poder dizer que, se
não fosse o tribunal, hoje talvez tivéssemos muito mais que 400 mil
mortes. Acho que o STF contribuiu para uma maior racionalização e acho
que tem tido uma atitude extremamente responsável, no que diz respeito à
questão sanitária e à questão fiscal.
Dos ataques que o senhor sofreu, qual mais te incomodou pessoalmente?
Nenhum ataque é agradável, não é? Embora eu tenha como
opção não reagir, compreendo. Eu tive um episódio nas ruas de Lisboa que
uma senhora disse que eu soltava bandidos… Mais recentemente, recebi o
telefonema de uma senhora agradecendo por ter dado um habeas corpus para
o filho dela. Isso faz parte da nossa vida. A melhor forma de conhecer o
chicote é ter-lhe o cabo nas mãos, já dizia o Machado de Assis. O
chicote muda de mãos. Quando as pessoas sofrem esses vilipêndios, essas
violências, é que elas entendem então o que que significa a defesa do
estado de direito.
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