Num Estado de Direito os governos não mandatam nem forçam consciências; é a política que serve o Direito. André Abrantes Amaral para o Observador:
A
solidariedade foi o argumento usado a favor da requisição das casas do
empreendimento Zmar, com o intuito de acolher pessoas que nas suas
habitações não tinham condições para isolamento profilático. O
entendimento subjacente é que quem está bem na vida não pode renunciar
ajuda aos que dela precisam. Que o auxílio até pode ser difícil, mas que
não deve ser recusado. Não é minha intenção contrariar estes
sentimentos que são de elementar justiça. O meu objectivo é realçar que o
papel do Estado não é impor aos cidadãos decisões de carácter ético e
moral quando foi o próprio Estado que falhou no cumprimento das suas
obrigações elementares. A táctica que Eduardo Cabrita utilizou para
‘sacudir a água do capote’ não é original no meio socialista, mas acaba
por ter duas implicações, uma irónica e outra grave; as duas são
interessantes e merecem ser analisadas.
A
primeira é que, afinal, o Estado não substitui a solidariedade
individual. Recordam-se dos ataques da esquerda à iniciativa do Banco
Alimentar? Na altura dizia-se que a solidariedade tinha de ser feita
através do Estado, nunca por iniciativa própria. É verdade que neste
caso do empreendimento em Odemira se trata de uma requisição, logo de
uma imposição estatal. Mas a sugestão de que temos de ser bons (o comunista João Ferreira chegou a citar o Papa Francisco no Twitter),
de que temos de ser solidários, apesar de hipócrita, demonstra que a
força do socialismo depende da aceitação individual. O socialismo esmaga
porque e quando as pessoas aceitam ser esmagadas. Como sucede com
qualquer autoritarismo depende dos que não têm força para se lhe opor.
A
segunda implicação é mais grave e diz respeito ao Estado de Direito,
peça basilar da nossa vida enquanto comunidade que convive com um Estado
que se rege por regras pré-escritas que garantem os direitos dos
cidadãos. Violar o direito de propriedade porque as autoridades (tanto o
governo como a Câmara de Odemira são do PS) foram incompetentes é abrir
uma brecha nos Direitos, Liberdades e Garantias que a Constituição
consagra. Podemos alegar que é coisa pouca, que não passa de algo
transitório. Sucede que a base para tal é subjectiva (o que é a
solidariedade?) de forma que na próxima ocasião o entendimento para a
suspensão de um direito possa ser outro, mais alargado, definitivo, mas
sempre subjectivo. Ao assentar numa imposição feita pelo Estado do que
possa ser uma boa acção individual, o ministro, o governo, as
autoridades, o que fazem é invadir as nossas consciências. Ora o
socialismo não é uma religião, mas uma ideologia política. Aliás, nem
enquanto religião o Cristianismo foi tão longe pois a ameaça do fogo do
inferno, para os que nela crêem, só se concretizará depois da morte.
O
assunto assume contornos absurdos quando se torna necessário telefonar
directamente ao Presidente da República para que o advogado dos
proprietários das casas no dito empreendimento possa ter acesso às
instalações dos seus clientes. É absurdo, porque inimaginável num Estado
de Direito, mas também porque foi o próprio Presidente da República
quem afirmou que “é o Direito que serve a política e não a política que serve o Direito”.
Marcelo não disse a lei, mas o Direito. A diferença é abissal. E se é
grave quando dita por um chefe de Estado europeu, torna-se
extraordinária quando proferida por um constitucionalista. Acima de
tudo, o Presidente deu o mote: para que serve o Direito se, quando a
política precisar, o Direito não for conveniente? Muda-se a lei ou
interpreta-se a mesma de acordo com o entendimento politicamente
conveniente. Eduardo Cabrita, o governo e a esquerda radical apenas
aproveitaram a brecha. A segurança jurídica, essa, ficou em via de se
perder.
O
problema coloca-se não apenas no direito de propriedade. Nestes últimos
dias o movimento #MeToo chegou a Portugal com as primeiras denúncias de
assédio sexual contra mulheres. A situação é extremamente delicada
porque o sofrimento infligido às mulheres é atroz, tal como é
inaceitável terem de viver com o receio de serem as possíveis vítimas de
alguém cujos intentos desconhecem por completo. A tudo isso soma-se a
dificuldade que é a prova desse mesmo assédio. O problema também é
complicado pois há o risco de surgirem denúncias falsas que, além de
destruírem a vida de uma pessoa inocente, mancham a batalha de todos os
que combatem o assédio sexual. Quantas mulheres serão silenciadas se
julgarmos falso o seu grito?
Uma
coisa é certa: não existe Justiça perfeita nem total (até porque uma
Justiça total pode ser em sim mesma uma imperfeição, mas isso é matéria
para outra discussão). Não existe Justiça perfeita, não é possível
reparar todas as vítimas (até porque há danos que são irreparáveis), mas
o Estado de Direito (em que a política está ao serviço do Direito e não
o contrário) é a melhor forma de fazermos o melhor que pudermos. Uma
excepção a esta fórmula, por mais pequena que seja, por mais transitória
que se queira, equivale a abrir as portas à subjectividade, à impressão
e à aparência. No dia em que confundirmos Direito com Moral, Política
com Direito e em que as nossas consciências passarem a ser mandatadas
por quem detém o poder podemos concluir que a Democracia e a Liberdade
ficam mais perto do fim.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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