Há
um risco muito grande quando, por ofício e por experiência, nos
arvoramos em uma suposta posição que nos permite contar a História a
partir da mistura entre o singular e o plural. Ou seja, quando pensamos
que nossa experiência individual é representativa daquilo que concerne à
coletividade. Seja ela a família, a geração ou a nação.
Ao
mesmo tempo, há um momento, uma inflexão, que por mais que todo o resto
negue, nos conecta a algo que nos escapa à vivência individual e nos
faz ter certeza de que somos parte de um conjunto maior. Seja ele a
família, a geração ou a nação. Aprendi com o sábio professor Carlos Melo
que poderíamos sintetizar este momento usando aquilo que Wright Mills
chamava de imaginação sociológica.
E,
a este aprendizado — e ao sábio professor, a quem agradeço tanto pelo
lado pessoal quanto profissional —, respondi que ao longo do tempo da
História, reconstruímos esta inflexão, já que os elementos pessoais e
coletivos mudam. E se movimentam em velocidades diferentes, produzindo
encontros que, por consequência, também geram resultados diferentes.
Assim, já me peguei pensando que minha trajetória pessoal era singular
ao ponto de não reconhecê-la entre meus familiares, minha geração e meus
pares profissionais. E, por mais que resista, às vezes não a encontro
na trajetória da nação.
Contudo,
em outros momentos minha trajetória pessoal me parece inteiramente
relacionada e coesa com meus vizinhos, geográficos ou emocionais, de
modo que a reconheço nos aspectos familiares, nas trajetórias de amigos e
amigas, na experiência de outros professores e professoras de História.
E quando isso ocorre, a imaginação sociológica de Wright Mills se
transforma em um instrumento que me ajuda, pessoal e profissionalmente, a
recontar a História.
Wright Mills |
Desta
forma, a cada vez que consigo perceber esta oscilação, que ora me
afasta ora me aproxima de alguma coletividade, refaço a pergunta central
de quem se debruça sobre a História: o que nos trouxe até aqui? E a
cada vez que faço isso mudo ou incluo novos elementos, produzindo
resultados diferentes, projetando ou desejando coisas também diferentes.
Porque esta é a resposta que, por mais que pareça óbvia, às vezes
precisa ser dita com clareza. Não projetamos nada, nenhum plano, nenhum
futuro se não tivermos parâmetros. E eles não estão em algo que não
conhecemos, mas sim no passado.
Por
isso é que em momentos como o de agora, quando as possíveis respostas —
aquelas que até hoje fomos capazes de dar à pergunta central — se
revelam falhas, é que devemos buscar no passado outros elementos. Não
porque as respostas que demos até agora estão erradas. Ao contrário,
foram dadas por percepções pessoais, geracionais e mesmo análises
profissionais. Elas são falhas porque não nos permitem ter parâmetros
que sustentem qualquer plano, qualquer projeção de soluções aos
problemas atuais. Assim, é preciso reconstruir nossa trajetória, de
modo a revelar os elementos que talvez para os problemas do passado
foram pouco relevantes, mas que para os problemas que hoje enfrentamos
são fundamentais. E os problemas atuais são aqueles que esgarçam a
possibilidade de qualquer coesão social, cindida por uma versão que nos
desagrega, que aposta naquilo que escancara o fracasso e que, por isso,
nos impede de termos qualquer parâmetro que não seja o oportunismo
tático daqueles que só enxergam a próxima eleição ou suas vaidades
pessoais. E que por isso, só projetam a briga de vida e morte — de ‘soma
zero’ — que vem nos conduzindo há anos à tragédia que, em nossos dias,
ganhou tração promovida pela pandemia.
Portanto,
é hora de recontarmos nossa trajetória. O que, nem de longe significa
negar as que já foram reveladas e que continuam pertinentes. Mas, ao
contrário da História ‘soma zero’, termos uma outra, ‘ganha-ganha’, que
nos ajude a sair da armadilha que nos metemos. Por exemplo, se realmente
queremos, como nação, enfrentar a desigualdade que nos marca como
tatuagem feita com ferro quente, devemos contar a História daquilo que
produziu e manteve a desigualdade, mas também perder o pudor de indicar
os equívocos que cometemos em nosso passado com propostas e práticas de
combate à desigualdade que, por mais que tivessem seriedade e boas
intenções, foram mal sucedidas.
Exemplos
não nos faltam. Apenas para continuar com o da desigualdade, não
enfrentaremos tamanho problema se identificarmos apenas os motivos que
fazem de Pernambuco um dos estados mais desiguais do país. Há, também,
os motivos que fizeram de Santa Catarina o estado com os menores índices
de desigualdade. E o dever de uma crítica aberta a todos os projetos
que, independentemente de quem os tenham formulado, fracassaram em seus
objetivos de reduzirem significativamente a desigualdade.
Escrevo
este pequeno texto pensando em quanto nos omitimos em identificar e
publicar aos quatro cantos que, embora parte significativa do que
entendemos ser a elite econômica esteja diretamente vinculada ao nosso
passado escravista, outra parte significativa da mesma elite é herdeira
de outras fontes, de outra História. E que, portanto, se a desigualdade
tem sua origem e se reproduz a partir dos elementos criados pela
escravidão — e os dados sobre a realidade, as dificuldades e a torta
distribuição das oportunidades dadas aos brasileiros e brasileiras com
origens africanas comprovam —, ela também tem origens e elementos
diferentes. E, se a desigualdade está relacionada às oportunidades,
devemos recuperar a trajetória que indica como muitos que ascenderam
socialmente em um país tão desigual como o nosso foram aqueles que
encontraram uma brecha, um caminho que muitas vezes não enxergamos:
brecha que pode ser o elemento que precisamos enxergar em nossa
trajetória, e que nos dará a oportunidade de voltarmos a projetar algo
melhor e maior do que nos últimos anos conseguimos. Penso nisso, com
pesar, depois de saber do falecimento por Covid de um jovem, com não
mais de 30 anos, que um dia foi meu aluno e que nos últimos anos foi meu
colega de trabalho. Descendentes de japoneses, Bruno aproveitou todas
as pequenas brechas que esta sociedade desigual permite para alguém com a
sua origem e condição inicial. Passou por duas escolas superiores
diferentes, uma na graduação, outra no mestrado. Ambas entre as mais
tradicionais e reconhecidas do país. Apostou na carreira acadêmica e
desde então vinha fazendo um trabalho que, senão brilhante, o dava a
oportunidade de viver e projetar um futuro digno. Planejava casar nos
próximos momentos e trabalhava arduamente, sem, no entanto, deixar de se
indignar com o país que não é capaz de perceber que a História dele é a
História do Brasil. Ou ao menos a parte que nos omitimos em contar.
Jogamos
Bruno e tantos outros aos leões. E estamos discutindo qual será o
próximo leão a nos negar o projeto que nos tirará desta enrascada
histórica que nos metemos. A História de Bruno é a História que nos
tirará desta armadilha. Precisamos contá-la urgentemente.
Bruno
Mitio era economista e mestre em Administração Púbica e Governo.
Faleceu por complicações decorrentes da Covid no último dia 01/05,
coincidentemente no dia do trabalhador.
Vinícius Müller é doutor em História Econômica pela USP e professor do Insper.
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