Por outro lado, essa mesma fábrica blindou-se à crítica, desqualificando moralmente incréus racistas, machistas e homofóbicos. João Pereira Coutinho para a FSP:
Assim
vai o mundo: algumas universidades britânicas estão dispostas a
permitir erros ortográficos, gramaticais e de pontuação aos alunos. A
ideia é promover uma “escrita inclusiva”, o
que significa que grupos marginalizados, incapazes de escrever uma
frase com sujeito, predicado e complemento direto, não devem ser
penalizados por isso.
A
Universidade de Hull, outrora casa de Philip Larkin, é explícita: o que
se entende por “escrita correta” é, na verdade, um produto da Europa do
norte e da cultura branca e elitista.
Preservando-se um mínimo de inteligibilidade (até quando? E, já agora,
não será isso também elitista?), o que conta é a forma autêntica como o
aluno se expressa.
Quando
li a notícia, confirmei uma vez mais o caminho de ruína que as
humanidades escolheram há muito. Digo humanidades e não ciências
naturais e exatas porque essas últimas não podem brincar —peço desculpa,
“desconstruir” noções arcaicas de verdade.
Sim, de vez em quando alguém fala em “matemática inclusiva” e outras fantasias do gênero.
Mas,
no mundo real, a “matemática inclusiva” levaria à queda de pontes; a
“física inclusiva” levaria à queda de aviões; e se o leitor, no bloco
operatório, soubesse que o seu cirurgião era versado em “anatomia
inclusiva”, o melhor era tentar fugir dali antes que a anestesia
começasse a fazer efeito.
Isso,
claro, se tivesse a sorte de ter anestesia —uma invenção elitista e
branca, que pode ser facilmente substituída por dois búzios sobre os
olhos.
Mas a notícia também mostra outra coisa: o longo caminho que o pós-modernismo fez desde a década de 1960 até nossos dias. Um livro recente de Helen Pluckrose e James Lindsay, intitulado “Cynical Theories”, ou teorias cínicas, ajuda a compreender essa aventura.
No
início, a proposta pós-moderna era uma confissão de desencanto,
argumentam os autores. As metanarrativas —científicas, religiosas,
ideológicas— tinham falhado com estrondo no terrível século 20. Donde, o
que restava?
Não,
com certeza, aquele ceticismo saudável e anti-utópico, que toma todo o
conhecimento por provisório e constitui a base do progresso.
O
ceticismo tornou-se radical e cínico. A verdade não era difícil e
provisória; era impossível e relativa. E, adicionalmente, dependia
geneticamente de um sistema de poder e hierarquia onde só os poderosos
têm vez.
Confesso
que sempre li com humor essa literatura conspiratória e ficcional. Que,
logicamente, se refuta a ela própria —se tudo se abre à tal
desconstrução, não há nenhum motivo para deixar a proposta pós-moderna a
salvo.
O
problema, dizem Pluckrose e Lindsay, é que o novo pós-modernismo
entendeu esse calcanhar de Aquiles e, na virada do milênio, agiu em
conformidade.
Não
bastava só a atitude lúdica e essencialmente descritiva da primeira
onda pós-moderna. Era preciso ir mais longe, corrigindo na prática o que
havia sido denunciado pela teoria. A indústria da “justiça social”, com
suas mil ramificações acadêmicas, nasceu desse imperativo:
reinterpretar e refazer o mundo através da lente do ativismo.
Por
outro lado, essa mesma indústria blindou-se à crítica, desqualificando
moralmente os incréus —racistas, machistas, homofóbicos et cetera— ou
até intelectualmente —ignorantes sobre os textos canônicos etc.
No
fundo, nada de novo. Apenas um retorno ao período medieval, em que a
discórdia era tratada como heresia. A Terra girava em torno do sol? Quem
afirmava tal coisa era diabólico e, além disso, não conhecia a Bíblia. Fim de papo —e fogueira com ele.
Igual tratamento deve ser ministrado a quem duvida da “fragilidade branca”, da “opressão epistêmica” ou da “interseccionalidade”.
Porque
a Verdade, a única Verdade tolerável, é que tudo se resume às
assimetrias de poder. E, se assim é, nada justifica que se aceite como
único conhecimento válido o que é produzido pela cultura dominante. Os
marginalizados também têm direito às suas epistemologias e
hermenêuticas.
No limite, esse pluralismo radical inclui até o direito de não se ser compreendido (“privacidade hermenêutica”).
Eis
o futuro: por enquanto, aceitam-se erros ortográficos, gramaticais; a
prazo, o aluno poderá comparecer ao exame e, em nome da “privacidade
hermenêutica”, ter nota máxima pelo silêncio ou pelo delírio.
blog orlando tambosi
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