Políticos que se julgam invulneráveis ou escondem males físicos são o
padrão; na era do coronavírus a história não é mais a mesma. Vilma Gryzinski:
Todos descobrimos ao longo do último mês que o combate ao coronavírus é como uma guerra concentrada, e ainda por cima contra um inimigo que se oculta como um alienígena dentro de nós.
Pouquíssimas semanas fazem a diferença entre o número de vítimas, que
as sociedades modernas não aceitam ser muito alto, e as consequências
devastadoras para a economia.
Equilibrar as duas coisas exige controle sobre uma multiplicidade
imensa de fatores, inclusive sobre o que ainda se desconhece sobre o
vírus.
Essa experiência sem precedentes e sem manual, ganhou uma dimensão
única na Inglaterra, em plena escala ascendente da epidemia, já
embicando para seis mil mortes nos próximos dias.
Um governo sem chefe, com Boris Johnson
derrubado pelo novo vírus, internado no domingo à noite, apenas uma
hora antes do discurso da rainha Elizabeth à nação – um dos vários
fatores das dimensões da urgência.
Boris só precisou percorrer algumas quadras, levado no seu carro
oficial de Downing Street, número 10 (na verdade, estava no apartamento
vizinho, no número 11) até o Hospital Saint Thomas.
Mas o trajeto mudou tudo. A muralha de informações controladas não
resiste numa sociedade livre e a segunda notícia ruim saiu 24 horas
depois: tinha sido transferido para uma UTI, “próximo” de um aparelho de
ventilação mecânica.
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Tradução cautelosa: está com pneumonia avançada, num quadro típico
desse vírus perverso, que geralmente se manifesta entre o sétimo e o
nono dia do aparecimento dos sintomas. Se for para o respirador,
enfrentará duas semanas decisivas.
Tradução nas redes sociais: já era, talvez até já tenha ido.
A boataria é avassaladora e cruel. Sem nenhum disfarce, a urubuzada
da esquerda torce para que Boris “pague” o preço por ter demorado um
pouco mais para determinar o isolamento que os países europeus mais
atingidos como Itália, Espanha e França.
Consideram a doença – não só dele como a da companheira, Carrie
Symonds, grávida de cinco ou seis meses e em recuperação – um castigo.
Boris não só ensaiou uma estratégia à sueca, seguindo recomendação do
principal conselheiro médico, como fez um desfile de autoconfiança
típico de sua personalidade extrovertida e da imagem política que
cultiva.
Parece outra era, mas apenas em dezembro ele ganhou espetacularmente
uma eleição que deu maioria ao Partido Conservador. Conseguiu assim
aprovar o Brexit – alguém ainda se lembra disso?
De personagem folclórico, quase um Tiririca de classe alta e versado
em grego antigo e latim, tonou-se o líder que sempre imaginou ser.
Autoconfiança é justamente uma das características dos líderes, em
política ou outras áreas (uma boa dose de narcisismo também não é nada
alheia à espécie).
Passar uma imagem de vitalidade também é fundamental, mesmo quando
está muito longe da verdade – o Brasil viveu isso com Tancredo Neves.
David Owens, neurologista que entrou para a política e foi ministro
das Relações Exteriores, criou até uma nova designação dessa doença
política, a “síndrome de húbris”. Os ingleses adoram a palavra grega que
significa arrogância ou insolência excessiva, originalmente como um
desafio aos deuses.
Escreveu um livro sobre o assunto, com título equivalente a Na Doença
e no Poder: Enfermidades de Chefes de Governo nos Últimos Cem Anos.
Um resumo: “Políticos democráticos tão diferentes quanto Woodrow
Wilson, Franklin D. Roosevelt, Churchill, Kennedy, Johnson, Nixon,
Pompidou, Mitterrand, Blair, George W. Bush, Chirac e Sharon, todos
mentiram sobre sua saúde”.
Alguns, muito mais. Woodrow Wilson transformou-se num dos casos mais clássicos de políticos que escondem doenças.
O presidente americano, que havia se recuperado da hedionda Gripe
Espanhola, sofreu um AVC em 1919 – não está eliminada a relação entre
uma doença e outra. Posteriormente, sua mulher, Edith, passou a ser
chamada de “a primeira presidente” dos Estados Unidos, tamanho o esquema
que montou para parecer que o marido estava no controle.
François Mitterrand soube que tinha câncer metastático de próstata
onze anos antes de morrer, no poder, tendo ocultado a doença e mentido a
respeito até bem perto do fim.
Provavelmente nenhum outro político teve a coleção de doenças de John Kennedy – e a espantosa variedade de remédios que tomava.
Sofria de Mal de Addison, uma doença rara das glândulas suprarrenais,
hérnia de disco, deslocamento do sacro ilíaco, úlcera, colite e
sequelas dos medicamentos, inclusive os recém-descobertos corticóides,
cujos efeitos ainda eram pouco conhecidos. Sem falar nas doenças
venéreas.
Hugo Chávez procurou a medicina cubana, reforçada por médicos russos, para esconder o quanto deu o câncer que o consumia.
Até hoje se discute se Churchill realmente sofria de depressão
profunda ou apenas teve episódios de queda de humor que não preencheriam
a definição clínica.
Comparar a II Guerra Mundial à atual pandemia é uma exagero
compreensível pela potencial capacidade de desestabilização da ordem
política e econômica provocada pelo novo corona.
Mas até o momento de maior importância existencial para Churchill e a
Inglaterra, o do desembarque na Normandia, teve um longo período para
preparações tão complexas e detalhadas que um número, entre tantos, dá
uma ideia: foram usados cerca de 150 mil mapas.
Agora, o tempo está concentrado em dias, às vezes horas.
O sistema parlamentar tem uma história longa e orgânica. Não nasceu
de uma revolução ou uma declaração de independência, mas foi
desenvolvido ao longo dos séculos.
Como tudo mais, está passando por um teste extremo de stress com a incapacitação, temporária ou não, do primeiro-ministro.
Inseguro quando apareceu nas primeiras vezes na condição de
substituto designado de Boris Johnson, Dominic Raab assumiu a direção
das reuniões diárias do comando de crise.
Tem plenos poderes? Controla os códigos dos mísseis nucleares
embarcados em submarinos? Fala com a rainha por telefone, como fazem os
primeiros-ministros?
Dentro de um grande drama, é uma subtrama de tirar o fôlego.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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