Os impasses que vêm travando nossa recuperação econômica e nosso pífio
investimento anual de 16% do PIB poderão conduzir-nos ao precipício.
Texto do professor Bolívar Lamounier:
Na quarta década do século 17, na França, a rainha-mãe Maria de
Médici e seus aliados na aristocracia pressionaram o rei Luís XIII a
abrir-lhes mais espaço no poder, e sabiam que só lograriam tal objetivo
forçando o rei a afastar o cardeal Richelieu do governo. Acharam que a
pressão exercida entre 1630 e 1632 havia surtido efeito, mas erraram
redondamente. O arguto cardeal ganhou a confiança do rei, deu a volta
por cima, aumentou ainda mais sua influência e entrou para a História
como um dos artífices da formação do Estado nacional francês. Desde
então os historiadores passaram a se referir à jogada da rainha-mãe e
seus amigos como une journée des dupes, ou uma jornada de otários.
A expressão foi também usada no Brasil, em 1840, por motivos de certa
forma parecidos. A turbulência do período regencial e o recuo de uma
ala liberal que havia exagerado na descentralização do poder forçou a
elite política a buscar uma forma de estabilizar o País. A solução
alvitrada foi uma medida legislativa mediante a qual anteciparam a
maioridade de dom Pedro II, então um adolescente de 15 anos. Consumado o
chamado “golpe parlamentar da maioridade”, o jovem monarca começou a
governar, demonstrando personalidade, mantendo tanto os líderes liberais
como os conservadores a conveniente distância. Tendo ficado a ver
navios, restou-lhes o consolo de haverem herdado dos franceses a
distinção de terem participado de uma jornada de otários.
Tenho para mim que tais jornadas ocorrem regularmente, embora assuma
formas variadas, ao longo da História. Podem os meus leitores imaginar
quantos milhares ou milhões de indivíduos desempenharam esse papel nos
quatro séculos decorridos desde o dia em que Maria de Médici pisou em
sua casca de banana?
Embora a condição de otário me pareça uma constante histórica, ando
arqueado pela impressão de estar ela se manifestando com excepcional
intensidade no momento atual, não só no Brasil, mas em numerosos países.
Minha impressão se deve à crescente frequência com que grupos
“identitaristas” se empenham em destroçar o convívio em sociedades até
há pouco razoavelmente integradas e políticos anunciam e trabalham
ativamente para pôr abaixo a democracia representativa.
Vejam o caso dos Estados Unidos. Sou leitor assíduo da edição digital
da revista The Atlantic, uma das melhores do mundo, que diariamente me
proporciona uma magnífica variedade de análises e relatos conjunturais.
Senti um frio na espinha ao ler, na terça 12, uma nota em que seu
diretor, Jeffrey Goldberg, anuncia para dezembro uma edição
especialíssima, cujo título geral será Uma Nação se Esfacelando (A
Nation Coming Apart). Com esse duro título, Goldberg externa sua
convicção de que os americanos estão se destroçando mutuamente. Mas tudo
bem, vá lá que há exagero.
Pensemos no “fim da democracia”. Registros dessa “profecia” podem ser
encontrados facilmente desde as primeiras décadas do século passado. É
outra proposição que aparece com regularidade, com variações, mas com
dois traços principais. Primeiro, por trás dela sempre há algum
candidato a ditador querendo, por ações ou omissões, acabar com a
competição eleitoral, o pluralismo, as garantias individuais, etc., a
fim de enfeixar em suas mãos todo o poder. Essa ambição tanto pode
motivar políticos que gozam efetivamente de certa popularidade (como
Getúlio Vargas em 1937) como outros que nutrem o delírio de governar
pacificamente um país mesmo conscientes da intensa rejeição que grande
parte da sociedade sente por eles.
Um exemplo caseiro é o próprio Getúlio do segundo governo, levado ao
suicídio em 1964. Outros são Lula, que se julga predestinado a voltar à
Presidência, o boliviano Evo Morales, forçado à renúncia poucos dias
atrás, e o húngaro Viktor Orbán, criador de um conceito preciosamente
contraditório, a “democracia antiliberal”. Um dado novo nessa velha
história é que agora tais líderes manobram para se perpetuarem no poder
por meio de eleições fajutas ou da implementação de programas de governo
que lhes permitam voar no tapete mágico da popularidade populista.
Outra constante nessa história é o desapreço pelas consequências. Os
líderes a que aludi no parágrafo anterior nunca se dão ao trabalho de
destrinchar o significado da expressão “fim da democracia”, muito menos
indicar que outro sistema estável de poder e legitimidade irá substituir
o regime representativo. Parecem ou são de fato incapazes de sequer
balbuciar uma resposta para tal indagação. A democracia acaba e que
outro modelo eles imaginam poder pôr no lugar dela? Muitos pensam que a
democracia é um luxo que só pode ser gozado por sociedades que hajam
atingido um alto grau de desenvolvimento, quando o certo é precisamente o
oposto: ela é uma forma política estável e flexível que permite o
paulatino equacionamento dos conflitos de interesse mesmo em sociedades
pobres.
Em nossa triste América Latina, o day after dos golpes pode ser
previsto com extrema facilidade. Cada país passa por alguns anos de
instabilidade populista, depois tenta retornar, com a mesma falta de
convicção ao regime representativo, depois o golpeiam novamente, etc.,
etc. Casos há em que os ciclos desse eterno retorno se mantêm por um
dilatado período de tempo, praticamente tornando inviável o
desenvolvimento econômico e social das respectivas sociedades. Eis aí a
Argentina – outrora um dos países mais ricos do mundo – que não me deixa
mentir. Evitemos, porém, qualquer nuance de regozijo ante a desgraça
argentina. Os impasses que vêm travando nossa recuperação econômica e
nosso pífio investimento anual de 16% do PIB poderão conduzir-nos a um
precipício semelhante. Pelo menos desse ponto de vista, façamos o
possível para não cair noutra jornada de otários.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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