Já passou da hora de as pessoas entenderem a diferença entre livre
mercado — que se baseia na liberdade e na concorrência — e
mercantilismo, que se baseia em privilégios concedidos pelo estado.
Artigo do economista e professor Juan Ramón Rallo, publicado pelo Instituto Mises:
Os inimigos do livre mercado frequentemente fazem dois ataques:
primeiro, eles dizem que tal arranjo é o favorito dos grandes
empresários; em seguida, dizem que os defensores do livre mercado
trabalham a soldo deste grande empresariado, defendendo seus interesses.
De maneira caracteristicamente conspiratória, eles se apressam em
descrever o libertarianismo — a filosofia que defende o livre mercado —
como sendo um conjunto de teses criadas ad hoc para beneficiar a
plutocracia: impostos baixos ou nulos, ausência de leis trabalhistas,
ausência de regulamentações sobre a economia, oposição à tributação,
oposição às leis antitruste etc.
O curioso, no entanto, é que se todas as propostas defendidas pelos
adeptos do livre mercado de fato fossem colocadas em prática, os grandes
empresários seriam exatamente os mais afetados e prejudicados por elas.
E isso é puramente lógico.
Para começar, a acusação de que o livre mercado defende os interesses
dos grandes empresários imediatamente se depara com um problema
insolúvel: os interesses dos empresários não são nada homogêneos.
Por exemplo, dentro de uma mesma área da economia, duas empresas
podem competir e batalhar ferozmente até que uma delas desapareça (pense
em duas empresas de telefonia celular, duas companhias aéreas ou de
sistemas operacionais).
Dentro de um mesmo sistema econômico, diferentes indústrias podem
reproduzir esta feroz concorrência para ganhar os clientes das outras
(por exemplo, empresários que fabricam computadores versus empresários
que fabricam máquinas de escrever).
Mais ainda: dentro da economia global, os interesses gerais de alguns
capitalistas podem estar em conflito com os interesses de outros
capitalistas (por exemplo, quando alguns especuladores atacam as ações
de uma empresa é evidente que os interesses dos especuladores são
absolutamente contrários ao interesses da empresa contra a qual eles
estão especulando).
Se os adeptos do livre mercado realmente querem defender os
interesses de empresários e capitalistas, então eles inevitavelmente
entrarão em colapso em decorrência de um curto-circuito esquizofrênico.
Afinal, exatamente os interesses de quais empresários ou capitalistas
eles irão defender a cada momento?
Com efeito, dado que não há a mais mínima garantia de que todos os
empresários serão beneficiados em um sistema de livre concorrência, a
lógica diz que a maioria deles não terá motivos para defender os
princípios do livre mercado. E a realidade é que o livre mercado
beneficia apenas aqueles empresários competentes, aqueles capazes de
investir adequadamente seu capital de modo a satisfazer — melhor do que
seus concorrentes — as variadas e variáveis demandas dos consumidores. E
de satisfazer continuamente estas demandas.
O livre mercado, portanto, é um arranjo bastante incerto, hostil e
variável, no qual poucos empresários podem se sentir permanentemente
confortáveis.
O que a grande maioria dos empresários realmente deseja é que o
estado lhes proteja da concorrência e lhes assegure uma fatia garantida
de lucro, que lhes permita desfrutar a vida sem dores de cabeça e sem
constantes preocupações acerca de como melhorar seus serviços aos
consumidores.
O que os empresários realmente desejam são subsídios (ou empréstimos subsidiados com os impostos da população) que lhes deem vantagem de mercado, tarifas protecionistas que os protejam da concorrência de importados e agências reguladoras que cartelizem o mercado e dificultem a entrada de novos concorrentes.
Mesmo uma carga tributária alta ou um código tributário confuso e
complexo podem ser do interesse dos grandes empresários: ambos não
apenas impedem que novas empresas surjam e cresçam, como ainda
representam um grande custo para as pequenas empresas já existentes. Ao
passo que as grandes empresas, recheadas de contadores e tributaristas,
conseguem navegar com facilidade pelos labirintos do emaranhado
tributário, as pequenas empresas, que têm uma folha de pagamento menor e
não podem se dar ao luxo de contratar contadores experientes e caros,
mal sobrevivem a isto. Seguidas vezes cairão na "malha fina" da Receita e
serão chamadas de "sonegadoras criminosas"
Se os libertários estivessem a serviço do empresariado, suas
principais reivindicações consistiriam em exigir que o estado criasse
mais regulações, mais tarifas, mais subsídios e aumentasse seus gastos
de forma a maximizar o lucro empresarial. (Exatamente como querem os intervencionistas).
No entanto, o que ocorre é justamente o oposto: os libertários
desejam abolir todas as regulações, todos os subsídios, todas as tarifas
e todos os gastos estatais que resultam em altos lucros para
determinada casta corporativa.
Fazendo uma lista nada exaustiva, os genuínos defensores do livre
mercado se opõem às seguintes prebendas tão ao gosto de vários
empresários acomodados:
1) Políticas de preços mínimos, subsídios e pacotes de socorro
Em um livre mercado, todas as empresas devem estar sujeitas aos
desejos dos consumidores. Isso implica que nenhum empresário ou
capitalista tem sua renda futura garantida. Suas rendas decorrerão
exclusivamente de suas capacidades de atender os desejos dos
consumidores de forma mais satisfatória que seus concorrentes.
Este princípio, é claro, não vale apenas para empresários e
capitalistas, mas também para todos os agentes econômicos (daí a tão
difundida ideia de que somos "escravos do mercado").
Consequentemente, os libertários se opõem a todos os tipos de
falcatruas estatistas criadas com o intuito de burlar esta servidão dos
empresários aos consumidores.
Exemplos típicos destas falcatruas são as políticas de preços mínimos
(o estado compra as mercadorias de um empresário a preços mais altos do
que estão dispostos a pagar os consumidores), os subsídios (os
pagadores de impostos são obrigados a financiar um projeto empresarial
com o qual não necessariamente concordam), e os pacotes de socorro
(empresas falidas, que destruíram mais riqueza do que foram capazes de criar,
e que, de acordo com os desejos claramente manifestados pelos
consumidores — que não mais compram seus produtos —, deveriam
desaparecer, são salvas pelo governo).
Empresários gostam de políticas de preços mínimos, de subsídios e de
pacotes de socorro. Os libertários são radicalmente contra todas elas.
2) Barreiras de entrada ao mercado
Se o empresário deve, a todo o momento, servir ao consumidor de forma
mais satisfatória que seus concorrentes, então é evidente que sua
situação dentro da economia de mercado está continuamente em perigo.
Mesmo que ele não esteja visualizando nenhuma ameaça ao seu domínio,
isso não significa que ninguém esteja preparando um plano de negócios
que a curto, médio ou longo prazo que termine por destroná-lo.
Exatamente por isso, os empresários que já estão estabelecidos no
mercado adoram todos os tipos de barreiras de entrada que impeçam que
outros empresários com novas ideias os desbanquem. Os libertários, por
sua vez, se opõem a toda e qualquer regulamentação que bloqueie a livre
concorrência, exatamente porque é a livre concorrência que permite
desbancar empresários menos eficientes.
Licenças, burocracia, regulamentações que imponham opressivos custos iniciais, concessões exclusivas e monopolistas, e até mesmo patentes — tudo isso é combatido pelos libertários.
Empresários já estabelecidos no mercado adoram restrições à concorrência. Os libertários as detestam.
3) Tarifas de importação, desvalorização cambial e outras barreiras protecionistas
Outra forma de proteção contra a concorrência são as tarifas de
importação, as quotas e outras barreiras protecionistas, como a
desvalorização cambial. Este ferramental mercantilista blinda
as empresas nacionais contra a concorrência estrangeira, assegurando
aos empresários que se especializaram em atender o mercado interno a continuidade de seu reinado.
Dado o tamanho da economia mundial em relação a uma economia nacional
qualquer, basta apenas imaginar a enorme inquietação que sente um
empresário nacional quando, de repente, as barreiras comerciais são
abolidas e ele se depara com toda uma cornucópia de potenciais concorrentes estrangeiros. Daí que inúmeros empresários adoram o protecionismo comercial e o câmbio desvalorizado, ao passo que os libertários sempre foram marcadamente pró-livre comércio e pró-moeda forte.
Novamente, empresários e defensores do livre mercado estão em lados completamente opostos.
4) Crédito artificialmente barato
Capitalistas e empresários têm, e sempre tiveram, uma relação
passional com o crédito barato. Muitos empresários vendem a maior parte
de suas mercadorias a crédito (imóveis, eletrodomésticos, automóveis
etc.), de modo que, quanto mais crédito, mais vendas.
Da mesma maneira, para montar uma empresa, ou para multiplicar seus
rendimentos, é necessário capital, e uma forma de obter esse capital de
maneira acessível é com empréstimos bancários artificialmente baratos.
Por sua vez, os empresários provedores deste crédito artificialmente
barato e abundante — os banqueiros — também obtêm lucros extraordinários
em decorrência de seu agora maior volume de negócios.
Sendo assim, quase todos os empresários adoram quando o governo, por
meio de seu Banco Central, fornece mais dinheiro aos bancos para que
estes expandam o crédito a custos mais baixos. E adoram ainda mais
quando o próprio governo, por meio de algum banco estatal de fomento, fornece este crédito.
Os liberais, ao contrário, condenam as manipulações inflacionistas do crédito
e, para acabar com elas, chegam até mesmo a propor o abandono da moeda
fiduciária e a abolição destes monopólios estatais chamados Bancos
Centrais, que tanto protegem e beneficiam o sistema bancário.
Outro ponto no qual empresários e defensores do livre mercado batem de frente.
5) Planos de estímulos e obras públicas
Uma possível consequência das expansões creditícias é o endividamento estatal decorrente de projetos faraônicos despropositados,
como obras públicas megalomaníacas. Muitas destas obras são inventadas
com o intuito de gerar empregos e "estimular" a economia.
Mas há também as "obras corriqueiras", como construção de rodovias,
portos, aeroportos, refinarias estatais etc., as quais são tocadas por
empreiteiras cujos donos possuem laços estreitos com políticos e que, por isso, são selecionadas de acordo com este critério.
As empresas adoram tais obras porque elas incrementam suas receitas e seus lucros.
Quando uma empresa privada faz um contrato com o governo para
executar uma obra, ela passa a usufruir uma renda garantida por meio do
dinheiro de impostos que o governo lhe repassa. Tal arranjo é a exata
antítese do livre mercado.
Se uma empresa é escolhida segundo critérios políticos, se a sua
renda é garantida pelo estado, e se não há consumidores para cobrar
qualidade, o arranjo é o exato oposto daquele defendido pelos
libertários.
[É por isso que empreiteiras são um grande exemplo de empresas
privadas que, na prática, funcionam como se fossem estatais. A
esmagadora maioria de suas receitas advém de obras que elas executam
para governos (federal, estaduais e municipais), sendo pagas com o
dinheiro de impostos. Segundo os relatos do Ministério Público, por
exemplo, quase 100% do faturamento da empreiteira Delta,
do empresário Fernando Cavendish, vinha de contratos públicos, chegando
a quase R$ 11 bilhões. A maioria dos recursos veio de contratos com o
Departamento Nacional de Infraestrutura de Transporte (Dnit).]
Com efeito, tais obras públicas nada mais são do que uma forma de
subsídio e, como todos os subsídios, elas são repudiadas frontalmente
pelos libertários.
Outro exemplo em que não há nenhuma coincidência de opiniões entre livre-mercadistas e empresários.
Conclusão
O fato de os libertários defenderem um arranjo no qual os melhores
empresários podem prosperar e enriquecer não significa que estejam a
serviço destes, uma vez que, em tal arranjo, os empresários que forem
ineficientes — e que não podem recorrer aos privilégios e protecionismos
estatais — estão condenados ao fracasso.
Mais ainda: nada impede que os empresários bem sucedidos de hoje se transformem nos arruinados de amanhã.
Os libertários defendem este arranjo porque ele é o único que permite
que todos satisfaçam suas necessidades: os melhores empresários
enriquecem somente após terem gerado muito valor para os consumidores.
A realidade, portanto, é exatamente o oposto do que parece: são os
intervencionistas, contrários ao livre mercado, que recorrem a todos os
tipos de argúcias estatistas para solapar a soberania do consumidor e,
consciente ou inconscientemente, encher os bolsos dos empresários
protegidos pelo governo.
Já passou da hora de as pessoas entenderem a diferença entre livre
mercado — que se baseia na liberdade e na concorrência — e
mercantilismo, que se baseia em privilégios concedidos pelo estado.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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