Inexiste encarceramento exagerado ou em massa no país da “bandidolatria”, escreve o promotor de Justiça Bruno Carpes na Gazeta do Povo:
Recentemente, a nova gestão do Ministério da Justiça emitiu seus dois
primeiros relatórios sobre os dados prisionais brasileiros, que cobrem o
período de dezembro de 2016 a julho de 2017. Não obstante a evolução
metodológica e a maior clareza na coleta de dados, mediante
especificação dos critérios adotados, os relatórios persistem no erro de
tratar como “preso” todo apenado vinculado aos regimes semiaberto
(praticamente falido) e aberto (este praticamente inexistente).
Tenho feito várias críticas ao total desencontro entre os dados
divulgados pelo Conselho Nacional do Ministério Público (com dados
divulgados até 2015), pelo Conselho Nacional de Justiça e pelo
Ministério da Justiça, o que dificulta sobremaneira uma análise
criteriosa a respeito dos números prisionais. O que agora chama a
atenção é o desencontro entre os relatórios anteriores e os da nova
gestão do Ministério da Justiça – ou seja, a contradição manifesta entre
dois documentos oriundos do mesmo órgão federal.
O novo relatório confirma o que denunciávamos em 2017: a utilização
do expediente de diminuir o número de vagas do sistema prisional para
inflar artificialmente as taxas de uma superlotação em si mesma
preocupante, a fim de sensibilizar o público em geral e a classe
política em particular para que aderissem à agenda do desencarceramento
em massa. No intervalo de um semestre, surgiram, ex nihilo, quase 100
mil vagas, diminuindo-se em 35% o índice de superlotação nacional. Tal
diferença já era perceptível anteriormente quando comparados os números
do CNMP e do CNJ, mas, desta vez, o mea culpa realizadopelo próprio
ministério é um avanço que merece ser saudado.
Outro fato curioso é de que entre junho e dezembro de 2016 houve
diminuição do número total de apenados no país e, se comparado o período
de um ano (até junho de 2017), o número se manteve estável, ao
contrário do crescimento médio dos anos anteriores. Contudo, não se
verificou nos registros do mesmo período diminuição no número de crimes
perpetrados, o que poderia justificar tal estabilização. Sobram três
hipóteses: ou o Poder Judiciário, em média, diminuiu o número de
decretos prisionais; ou a polícia efetivou menos prisões; ou a nova
gestão do Ministério da Justiça apurou erro nos números anteriormente
divulgados.
Outro aprimoramento do relatório reside na diferenciação entre pardos
e negros, que possibilitou análise mais precisa sobre a persistente
acusação de “racismo endêmico” no sistema judiciário brasileiro:
verifica-se no relatório que negros também são minoria no sistema
prisional. Na contramão de discursos de setores ideologizados, o número
de brancos presos chega a ser equivalente ao dobro do número de presos
negros. Há de se lembrar sempre que o crime não tem cor e, por
consequência, as prisões são realizadas em razão da conduta desviante do
criminoso, e não pela cor de sua pele.
Outro grande avanço, como eu já defendia desde 2017, foi a correta
definição de presos provisórios para fins estatísticos, isto é, somente
aqueles sem condenação. Desta forma, apontou-se que 33,29% dos apenados
encontram-se aguardando julgamento, o que deixa o Brasil em 89.º lugar
no mundo em número de presos provisórios, abaixo de países como Nova
Zelândia, Dinamarca, Bélgica, Suíça e Canadá, por exemplo. Ou seja,
comparativamente, o Brasil não tem muitos presos provisórios.
Afora os presos provisórios, o novo relatório passou a tratar os
demais apenados como sentenciados, e não mais como presos definitivos.
Assim, os números trazidos a respeito de cada regime prisional e de
prisões provisórias permitem que se verifique o número de pessoas
realmente encarceradas, isto é, aquelas que se encontram sentenciadas em
regime fechado e aguardando julgamento. Somam-se 558.275 pessoas
presas, gerando a taxa de 267 pessoas presas para cada 100 mil
habitantes, deixando o país com maior número de assassinatos e crimes
violentos do planeta na 44.ª posição no mundo e na 6.ª posição entre os
13 países da violenta América do Sul.
Mais claro e metodologicamente aperfeiçoado – atentando-se a algumas
de nossas críticas passadas –, o relatório novamente demonstra que
inexiste encarceramento exagerado ou em massa no país da
“bandidolatria”. Por conseguinte, causa espanto a insistência de setores
da academia, da imprensa e do mundo jurídico em afirmar que o nosso
sistema penal atual privilegia a prisão em vez de medidas alternativas,
tal como sustentado, recentemente, pelo representante do Conselho
Nacional de Justiça em audiência pública promovida na Câmara dos
Deputados para debater a famigerada audiência de custódia. Um agente
público que ocupa um posto de tamanha relevância não pode desconsiderar o
fato de que apenas 2,69% das penas brasileiras estipulam regime inicial
fechado, e nem que levantamentos completos, como o do Tribunal de
Justiça do Rio de Janeiro, sob o “guarda-chuva” do CNJ, demonstram que
em 2015 apenas 5,36% dos processos daquele estado versavam sobre réus
presos.
É claro que no plano teórico, doutrinário, das ciências humanas, a
liberdade de cátedra e de contraposição na busca da síntese deve ser
sempre bem-vinda, visando a debater o fundamento e as consequências do
instituto da prisão. Nesta ordem, o novo relatório traz novos dados que
permitem aprofundar o debate e desmitificar falsas conclusões,
especialmente nos órgãos públicos ligados ao sistema judicial. O que não
se concebe é que órgãos públicos – especialmente aqueles ligados ao
sistema judicial – coloquem suas idiossincrasias acima do escopo das
suas funções, nem da análise escorreita dos números que estão à sua
disposição em favor de narrativas sem qualquer amparo na realidade.
Como observou o grande John Adams, os fatos são coisas teimosas que não
se submetem a nossos desejos.
Bruno Carpes é promotor de Justiça
do Ministério Público do Estado do Rio Grande do Sul e membro do Núcleo
de Pesquisa e Análise da Criminalidade da Escola de Altos Estudos em
Ciências Criminais.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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