A liberdade de ensinar garante ao professor o direito de manifestar seus
pontos de vista, mas não o de tentar impô-los aos alunos. Artigo de
Miguel Nagib, publicado pela Gazeta do Povo:
A Gazeta do Povo dedicou editorial recente, publicado na edição
impressa de 1.º de dezembro e em seu site na segunda-feira, dia 3, à
proposta defendida pelo Movimento Escola sem Partido (ESP) para coibir o
uso do sistema educacional para fins de propaganda ideológica, política
e partidária. Ao criticá-la, porém, acabou incorrendo na conhecida
falácia do espantalho.
Depois de fazer três importantes concessões ao ESP ‒ reconhecer que a
doutrinação nas escolas e universidades é um fato notório; que algo
precisa ser feito contra esses abusos; e que vários dos deveres do
professor, previstos na proposta, “fazem muito sentido”, pois seria
“absurdo que professores privilegiassem alunos por causa de suas
convicções políticas ou morais”, promovessem “a cooptação ou a
propaganda político-partidária em sala de aula” ou desrespeitassem as
convicções morais dos pais dos estudantes ‒, o editorial aponta o
“calcanhar de Aquiles do projeto”: a regra segundo a qual o professor,
“ao tratar de questões políticas, socioculturais e econômicas,
apresentará aos alunos, de forma justa – isto é, com a mesma
profundidade e seriedade –, as principais versões, teorias, opiniões e
perspectivas concorrentes a respeito da matéria”.
“A própria formulação do texto” ‒ diz o jornal ‒ “exige a
apresentação de ‘versões, teorias, opiniões e perspectivas
concorrentes’: versões falsas, opiniões absurdas, teorias sem o menor
compromisso com a realidade, todas elas acabam contempladas pelo
projeto, com a agravante de que o professor também não poderá emitir seu
juízo de valor sobre as mentiras que será obrigado a apresentar a
contragosto, para que não se considere que ele está agindo para impor
uma visão, ainda que esta visão seja cristalinamente verdadeira”.
Eis o espantalho. Há dois erros gigantescos nesse parágrafo e que
poderiam ter sido evitados por uma leitura mais cuidadosa da norma, sem
falar no princípio hermenêutico que orienta a descartar interpretações
que conduzam a resultados absurdos.
Primeiro: a proposta do ESP não impõe ao professor o dever de
apresentar aos alunos todas as versões, teorias, opiniões e perspectivas
concorrentes a respeito das questões controvertidas abordadas em sala
de aula ‒ o que seria um disparate. O que ela exige ‒ pois a própria
Constituição o exige, ao assegurar aos estudantes o direito à educação,
ao pluralismo de ideias e à liberdade de aprender ‒ é a apresentação das
principais versões, teorias, opiniões e perspectivas sobre determinada
controvérsia. Trata-se, aqui, a toda evidência, dos pontos de vista
academicamente relevantes, que desfrutam de prestígio no meio científico
e são avalizados pela bibliografia de referência sobre o assunto.
Além disso, o projeto não impede o professor de dizer o que pensa
sobre controvérsias que fazem parte da sua disciplina. Se impedisse,
seria inconstitucional. A liberdade de ensinar garante ao professor o
direito de manifestar seus pontos de vista, mas não o de tentar impô-los
aos alunos, omitindo ou distorcendo opiniões academicamente relevantes
que não desfrutam da sua simpatia.
Diversamente do que se lê no editorial, a proposta do ESP não
pretende uma “neutralidade absoluta”. A neutralidade exigida pela
proposta é a que decorre dos princípios constitucionais da
impessoalidade e laicidade, que impedem o professor de usar a sala de
aula para promover suas próprias preferências ideológicas, religiosas,
morais, políticas e partidárias. A neutralidade nas ciências, à qual o
projeto não faz menção, é um ideal que se confunde com a busca da
verdade; e o pluralismo de ideias é o meio constitucionalmente previsto
de empreender essa busca, não um fim em si mesmo. O pluralismo está para
o ideal de neutralidade na ciência, assim como o contraditório está
para o ideal de imparcialidade na justiça. São princípios instrumentais.
Ao apresentar os principais pontos de vista sobre uma questão
controvertida, o professor contribui para elevar o conhecimento dos
alunos a um novo patamar, ajudando-os a perceber a complexidade do
mundo, e a não se deixar levar pelo canto de sereia das ideologias. Como
se vê, não admira que os partidos e organizações de esquerda ‒ que são
os grandes receptadores dos furtos ideológicos praticados diariamente
nas escolas e universidades ‒ estejam apavorados com o avanço do ESP.
O editorial especula sobre o risco de judicialização dos conflitos
que adviriam da aprovação do projeto. Esse risco de fato existe, mas não
decorre do projeto ‒ que apenas expressa em linguagem mais acessível o
que já está na Constituição, sem criar nenhum novo direito ou obrigação
para ninguém ‒ e, sim, da disseminação de conhecimento sobre a ilicitude
da doutrinação. Portanto, para evitar a temida judicialização, a
solução não seria rejeitar a proposta do ESP, mas manter as vítimas da
doutrinação em estado de completa ignorância quanto aos direitos que
lhes são garantidos pela Carta Magna: no caso dos alunos, o direito à
educação, ao pluralismo, à liberdade de aprender, à impessoalidade, à
laicidade, à liberdade de consciência e de crença, à intimidade e à
proteção integral; no caso dos pais, o direito à educação religiosa e
moral dos seus filhos. É isso o que defende o editorial? Parece que sim.
Embora identifique como positivo o fato de os pais procurarem as
coordenadorias e diretorias quando identificam práticas doutrinárias por
parte dos professores ‒ o que pressupõe algum nível de consciência
sobre a ilicitude dessas práticas ‒, o jornal reitera sua posição
contrária à proposta do ESP, que outro objetivo não tem senão o de
informar estudantes, professores e pais sobre o significado e o alcance
de direitos e deveres que já existem.
O editorial se equivoca, por fim, ao sugerir que a aprovação do
projeto possa transferir a políticos e burocratas o protagonismo da
sociedade no combate à doutrinação. Na verdade, antes mesmo de ser
aprovada, a proposta do ESP já vem despertando e mobilizando amplos
setores da sociedade contra essas práticas covardes, antiéticas e
ilícitas que tanto mal vêm causando aos estudantes, às famílias e à
democracia brasileira.
Miguel Nagib é advogado e fundador do Escola sem Partido.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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