O historiador Jorge Caldeira relembra, em sua coluna semanal na Gazeta do Povo, sua vida de estudante nos anos 70 e sua amizade com a professora Ruth Cardoso:
Corria o ano de 1975,
meu primeiro como aluno de Ciências Sociais. Aulas num barracão com
teto de zinco, quente no calor e barulhento ao extremo com qualquer
chuvinha. Clima depressivo por causa da ditadura. O presente sombrio era
suportado pela maioria por causa de uma curiosa estrutura curricular.
Dizia-se que o curso
fora organizado por Florestan Fernandes, que queria sociólogos capazes
de trabalhar com diversas metodologias. Como símbolo deste ecletismo
escolhera uma tríade formada por Durkheim (e os funcionalistas
norte-americanos), Weber e Marx. Nesta ordem, que foge à cronologia, os
alunos deveriam ter um semestre de estudos de cada corrente logo que
entrassem na faculdade, tanto em sociologia como em política.
Corria o segundo
semestre e as aulas sobre Weber. Então, em outubro de 1975, Vladimir
Herzog foi morto no centro de torturas paulista do regime militar. A
reação não foi o travo amargo de silêncio dos casos anteriores, graças a
religiosos iluminados. O cardeal Paulo Evaristo abriu a catedral da Sé
para um culto a um judeu. O rabino Henry Sobel foi comandar as orações –
e o pastor James Wright as ecoava. Apesar das ameaças e do cerco da
polícia, milhares de pessoas lotaram o templo.
Como por milagre, o
movimento estudantil ganhou outro ânimo. Surgiu militância por todo
lado, com a reorganização de centros estudantis e discussões. Quanto a
mim, mal podia esperar o próximo semestre, aquele que seria dedicado a
Marx. Tinha a mais límpida certeza de que uma correta leitura de seus
textos traria depressa a revolução que explodiria a ditadura. Ainda mais
porque a professora designada era Ruth Cardoso, a mãe do Paulo
Henrique. Para completar, ela e Fernando Henrique tinham ido passar uma
temporada em Princeton, com o que supunha que organizaria um curso
revolucionário.
Ela fez isso – mas
não exatamente como eu imaginava. Depois de uma rápida apresentação do
tema mais castiço do marxismo, a determinação da esfera econômica sobre
aquela da política, apresentou-nos os textos de um professor de Harvard
com quem andara debatendo o assunto. Seu nome era Barrington Moore Jr e o
texto o hoje clássico “As origens sociais da ditadura e da democracia –
senhores e camponeses na construção do mundo moderno”.
Resumo muito
depressa: um estudo global (incluía o Ocidente, China, Índia, Japão e
Índia, além de muita discussão sobre a Rússia) da transição da economia
agrária para a industrial. Por todo lado, o mesmo processo de
mercantilização da economia, surgimento de uma economia industrial,
acumulação e capitalismo.
O diabo estava no
particular: os regimes políticos formados para sustentar esta transição
tiveram formas diversas. Alguns eram democracias; outros, ditaduras – e
havia países nos quais estes se alternavam. Daí meu pavor: ao contrário
da cartilha, comecei a perceber que formas dos regimes políticos não
eram, sob a luz da análise histórica real, determinação uniforme da
realidade econômica. A linha reta entre conhecimento de Marx e revolução
socialista que eu traçara começava a se desfazer.
Curioso é que o curso
que provocava dúvidas tenha sobrevivido galhardamente ao clima externo.
No ano de 1976 os estudantes saíram para as ruas em passeata. A
presença maciça da polícia, a tropa de choque com seus gases e
cassetetes, transformavam cada protesto numa aventura militar. Mas tudo
ia para as manchetes dos jornais no dia seguinte, o que fazia com que
cada um de nós participantes visse a si mesmo como um herói
revolucionário.
A excitação se
refletia na escola. Panfletos circulavam, organizações políticas vinham à
luz com suas propostas de revolução. Os debates sobre elas e os atos
políticos eram bem mais quentes que as leituras acadêmicas. Como parte
deste espírito, em muitos casos o semestre sobre Marx parecia uma
decepção. Volta e meia os alunos faziam greve para debater os cursos
sobre ele, considerados muito formais e pouco capazes de orientar o que o
jargão do tempo chamava de “práxis revolucionária”.
Nada aconteceu com o
curso de Ruth. Ela sabia se cuidar. Em tempos nos quais só raros
professores tinham acesso à bibliografia estrangeira atualizada – apenas
os excepcionais que iam dar aulas em Princeton, por exemplo – não havia
exemplar do livro original nem mesmo na biblioteca. Traduções levavam
anos ou décadas para aparecer. Para a quase totalidade dos alunos, o
único acesso ao texto eram os xerox dos excertos habilmente escolhidos
por ela, com ênfase no que leitores de panfletos podiam entender como
marxismo.
Mas, como era amigo
da família, acabei convencendo a professora a me deixar xerocar a obra
inteira, sob promessa de não passar nada adiante e manter silêncio.
Imaginava que a leitura da obra inteira iria me ajudar a reencontrar o
caminho da revolução, a certeza de que, como dizia a palavra de ordem
que gritávamos das ruas, “O povo unido jamais será vencido”.
Não foi bem por aí.
Fiel à tradição da Escola de Frankfurt, na qual se formara, Barrington
Moore Jr não distinguia os casos dos regimes políticos da União
Soviética e da China – os faróis socialistas desses tempos de Guerra
Fria. Ao contrário de todos os partidos comunistas e sua propaganda
tratava dos regimes desses países como partes não diferentes de todas as
outras no processo geral de mercantilização da economia mundial. Não os
definia economicamente como regimes socialistas, mas como arranjos
governamentais para industrialização e urbanização. Pior ainda reservava
palavras bastante diretas para os regimes políticos:
“Nada pode negar o fato patente de que a revolução bolchevista não trouxe a libertação do povo russo; quando muito, pode ter trazido a possibilidade de libertação. A Rússia stalinista foi uma das mais sangrentas ditaduras que o mundo já viu. Embora se saiba muito menos da China é seguro afirmar que as reivindicações do socialismo são ali só promessas, não realizações” (p. 579 da edição portuguesa da Martins Fontes).
Tal frase foi escrita
em 1968. E, ela sim, era um conhecimento inteiramente novo no ambiente
brasileiro de 1976. Estava além da Guerra Fria. Exigia entender de outra
forma tanto a economia – algo de caráter realmente global e impositivo –
como a política: o espaço no qual se constroem arranjos que permitem
respostas diversas, variedade, composição, acerto entre o global e o
local.
Além da novidade
radical da análise, encontrei também a mais deliciosa orientação para
lidar com estas pesadas novidades. Aquilo que nem dava para conversar no
ambiente público da faculdade transformou-se em festa. Ruth Cardoso
debatia o livro comigo na cozinha, enquanto ia preparando jantares. Ali a
professora forçada para o departamento de política deixava correr a
antropóloga essencial – aquela escorraçada da área original por se
interessar pelo presente.
Enquanto fazia seus
ensopados de sábado (o de coelho era divino), ia me ensinando a pensar.
Organizava minhas hipóteses. Quando eu achava que tudo estava certo, ia
colocando novos dados. Lá se ia a hipótese – e vinha a lição: “Quando a
gente estuda, sempre chega a hora de jogar fora as hipóteses gerais para
ficar com os dados novos”.
Os dados eram seu
reino de antropóloga. Só deles, sempre particulares, vinha a iluminação
real que matizava e dava sentido para a teoria. Só eles davam acesso ao
conhecimento do novo, o que estava emergindo. Só na sociedade, não no
Estado, havia liberdade para criar – e força para manter uma democracia.
Era o livro muito melhorado.
Continuei indo às
passeatas, lutando contra a ditadura brasileira. Mas passei a pensar nos
panfletos e palavras de ordem ao redor como uma espécie de fast food
necessário – mas pouco apetitoso se comparado aos jantares.
A lembrança que ficou
em mim deste tempo é muito forte. Tão forte que sustentou uma leitura
meio torcida do livro de Manuel Castells, “Ruptura” – apesar de
qualidades evidentes para entender o Brasil de hoje que ainda não foram
partilhadas com você, caro leitor – mas serão.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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