Esclarecedor artigo de Paulo Cruz, publicado na Gazeta do Povo, visita autores do passado que merecem lembrança diante das arengas ideológicas contemporâneas:
“O homem é um ser moral, dono de uma vontade e senhor de um livre arbítrio; assim Deus o criou com a faculdade de autodeterminar-se. No uso correto de sua vontade e no exercício esclarecido de seu livre-arbítrio, é que consiste a essência da sua personalidade de ser humano, a autoridade de sua soberania e a independência moral, que lhe confere um atributo indispensável de liberdade”. (José de Souza Marques)
Dizer que a
desigualdade social no Brasil tem contornos históricos é uma
redundância, pois todas as desigualdades sociais têm causas históricas.
Porém, no Brasil há um dado importante que não pode ser escamoteado: a
abolição da escravidão. Tal evento, pela peculiaridade de seus
desdobramentos, marcou indelevelmente o futuro do país e, sobretudo, dos
ex-escravos. O impasse absurdo no qual se envolveram os abolicionistas,
a Coroa, os republicanos e os ex-senhores de escravos arrastou a
solução definitiva do pós-abolição até o golpe republicano, em 15 de
novembro de 1889, relegando uma quantidade gigantesca de brasileiros à
mais absoluta miséria.
Os projetos de
educação e democracia rural de André Rebouças, bem como as tentativas de
viabilizar a indenização aos ex-escravos – algumas delas coordenadas
pela própria princesa Isabel – encontraram pela frente toda sorte de
empecilhos por parte dos republicanos, que queriam o fim da monarquia, e
a resistência atroz dos senhores, pois eles é que desejavam indenização
por terem perdido a mão de obra gratuita (e dinheiro, pois o escravo
era mercadoria). E não havia passado um mês da assinatura de Lei Áurea
quando o presidente do Conselho de Ministros, João Alfredo Correia de
Oliveira, para acalmá-los, apresentou na Câmara um projeto de
indenização no valor de 300 mil contos, que Rebouças chamou de “projeto
desgraçado”. A campanha republicana seguia a passos largos e a própria
monarquia parecia já não ter forças para resistir; dom Pedro II estava
doente e cansado, e também via a República como uma consequência natural
das nações modernas – tendo, inclusive, se declarado republicano. A
princesa Isabel, apesar do feito heroico da abolição, tinha fama de
carola e politicamente frágil.
No entanto, Rebouças,
Joaquim Nabuco e José do Patrocínio tentaram assegurar a continuidade
de seus intentos – e da monarquia. Enviaram projetos à Câmara,
discursaram em favor dos libertos, mas sucumbiram à implacável campanha
republicana. O restante do ano de 1888 foi de intensos debates, disputas
e violência. Mas os republicanos estavam determinados. O jornalista
Silva Jardim, republicano ferrenho, em 13 de maio de 1889, primeiro
aniversário da abolição, publicou na Gazeta de Notícias um artigo
mordaz, culpando a monarquia pelo abandono dos ex-escravos:
“O governo, que presidiu à declaração da liberdade dos antigos escravos, teve as incomensuráveis vantagens de uma situação única para, levantando moral, social e materialmente a raça emancipada, imprimir ao conjunto de nossa civilização um progresso imensamente vasto e rápido. A incontestada ditadura política e moral que ele exerceu, apoiada solidamente na opinião abolicionista, a cujo triunfo se subordinaram, com resignação patriótica, os proprietários de escravos, dava-lhes a força soberana para todas as tentativas de grandes, urgentes e preciosas reformas. Foi essa situação que o governo imperial perdeu para sempre, pela sua falta de convicções abolicionistas e pela sua falta de fé no futuro da pátria e nos destinos da humanidade. O antigo escravo ficou tão miserável, tão infeliz e tão desprotegido como dantes. Ninguém pensou em dar-lhe o que se oferece ao colono estrangeiro; ninguém tratou de lhe constituir a base indispensável da existência material, dando-lhe terras devolutas e instrumentos de trabalho, facultando-lhes os meios de fundar uma habitação, diretamente por si ou com o auxílio dedicado do seu antigo patrão; ninguém facilitou a organização da família, e ninguém promoveu em favor dele o estabelecimento de um sistema de simples e fácil instrução elementar.”
Discursos como esses
se espalhavam pelas principais províncias, ampliados pela sede de
vingança dos ex-senhores de escravos. Rebouças testemunhou (e registrou
em seu Diário) a resistência do imperador em indenizá-los: “a 22 de
agosto de 1888, ainda esperavam os celerados indenização e Chins… Foi
quando dom Pedro II disse-lhes ‘Não! Não… Mil vezes não!’, que eles
foram para a república de mamelucos – Bandeirantes e traficantes de
escravos brancos e amarelos; porque a Inglaterra não permite que sejam
negros africanos”. Isso acelerou o ocaso da monarquia e o fatídico golpe
militar-republicano, em 15 de novembro de 1889, e a expulsão da família
imperial do Brasil – Rebouças, desolado com os descaminhos do projeto
ao qual devotara sua vida, os acompanhou para nunca mais voltar. E os
republicanos, vitoriosos, reescreveram a história.
Porém, não podemos
simplesmente aceitar o seu relato sem, ao menos, confrontá-lo com o
testemunho dos principais abolicionistas. Joaquim Nabuco, em 1893, em
carta a André Rebouças, diz:
“Hoje estou convencido de que não havia uma parcela de amor ao escravo, de desinteresse e de abnegação em três quartas partes dos que se diziam abolicionistas. Foi uma especulação mais! A prova é que fizeram esta República e depois dela só advogaram a causa dos bolsistas, dos ladrões da finança, piorando infinitamente a condição dos pobres. […] O cinismo é tal que ninguém admite que haja um homem de bem. Fazes tu bem em estar longe de tudo, ainda que tenhamos, pela nossa parte, que aceitar a responsabilidade que nos toca na bancarrota moral da abolição, no abandono das raças de cor à destruição da época. Estávamos metidos com financeiros, e não com puritanos, com fâmulos de banqueiros falidos, mercenários de agiotas etc.; tínhamos de tudo, menos sinceridade e amor pelo oprimido. A transformação do abolicionismo em republicanismo bolsista é tão vergonhosa pelo menos como a do escravagismo. Basta de torpezas”.
Ou seja, os
republicanos culparam a monarquia, mas acabaram por abandonar os negros
em pior situação do que já se encontravam. Na capital, a discriminação e
a marginalização em massa levaram os negros a se confinarem nos morros,
onde muitos, infelizmente, ainda estão. Rebouças, em carta de 1892 ao
amigo Visconde de Taunay, diz: “Não direi palavra sobre as misérias do
Brasil… cobrir a cabeça de cinzas, como faziam os primitivos hebreus, e
dizer contrito a Jeová: Fiat Justitia! Fiat Justitia!”. Patrocínio volta
a ser republicano, para depois arrepender-se, criticar o governo de
Floriano Peixoto e ser deportado para a região do Rio Amazonas, de onde
voltou pouco tempo depois, isolado. Joaquim Nabuco se retirou por um
tempo da vida pública, passando a viver entre a Inglaterra, França e
EUA.
De lá para cá,
sobretudo quando os historiadores e sociólogos marxistas começaram sua
tarefa de reinterpretar a história do Brasil a seu modo, a desigualdade
social vem sendo atribuída a esse processo mal resolvido da abolição,
pois é visível que temos, em sua imensa maioria, os descendentes dos
libertos em 1888 – ou seja, os negros – entre os mais pobres. E ninguém,
em sã consciência, negaria isso.
No entanto, é preciso
colocar tal fato em perspectiva. Mais do que isso: é preciso ver as
coisas como são. Mesmo que seja correto afirmar que a desigualdade
brasileira decorre de uma ferida histórica ainda aberta, e que uma das
consequências lógicas da escravização de africanos tenha produzido, ao
longo dos séculos e após a emancipação, uma maior quantidade de negros
pobres, não é nem um pouco aceitável que, automaticamente, a
criminalidade seja atribuída às mesmas causas. E mais: associam-na ao
racismo!
Recentemente, foi publicado pelo Nexo Jornal – e festejado por jornalistas como Míriam Leitão – o Anuário Brasileiro de Segurança Pública,
que contém, como sói acontecer com esse tipo de estatísticas produzidas
por ONGs, análises sobre os crimes no Brasil com dados separados por
tonalidade de pele (brancos, pretos e pardos) e/ou origem étnica
(amarelos e indígenas) – conhecidos como raças. Diz o documento:
“Ao analisar os números da violência no Brasil percebe-se que esta não pode mais ser tratada como um fenômeno marginal, principalmente quando as políticas públicas são cunhadas exclusivamente para equacionar o poder político com uma tentativa vil de organização da própria violência. Tal organização nos remete a um quadro há muito conhecido em nosso país:essas políticas violentam prioritariamente jovens, negros e segmentos das periferias, aqui representados por nossos policiais da base que, no caso da Polícia Militar, são os soldados, os cabos, os sargentos e os subtenentes e, no caso da Polícia Civil, os agentes. São estes que estão morrendo”. (grifo meu)
Apesar de,
curiosamente, incluir estatísticas de mortes de policiais – dentre os
quais, 56% das vítimas são negros –, diz que 76,2% dos jovens que morrem
pelas mãos das polícias são negros.
Esse tipo de dado se repete por todos os estudos sobre violência, pobreza e criminalidade no Brasil. O Mapa da Violência
– talvez a mais famosa e importante publicação sobre o assunto –, em
sua última edição (2016), traz um tópico específico – A cor das vítimas –
e os seguintes dados sobre homicídios (restringirei entre brancos e
negros, em números totais):
Negros 29.813
Brancos 9.766
No entanto, quando abrimos a classificação “negros” em “pretos e pardos”, os números são significativos:
Pretos 3.459
Pardos 26.354
Ou seja, morrem mais
brancos do que pretos no Brasil. Os pardos, que podem ser representados
por qualquer tonalidade entre o branco de cabelos crespos e o moreno
jambo, somam quase o triplo dos brancos e quase oito vezes os pretos.
E tem mais, em estados do Sul morrem mais brancos do que negros:
Rio Grande do Sul
Negros 500
Brancos 1.521
Santa Catarina
Negros 98
Brancos 385
E, em São Paulo, também morrem mais brancos:
Negros 1.697
Brancos 1.763
Aliás, em São Paulo os números dos assassinatos diminuíram sensivelmente em dez anos: de 9.430 para 3.460.
Já em estados do Norte e Nordeste, que são, é bom frisar, majoritariamente mestiços (pardos), os números são alarmantes:
Pará
Negros 2.115
Brancos 136
Bahia
Negros 3.999
Brancos 289
Pernambuco
Negros 2.178
Brancos 281
Rio Grande do Norte
Negros 1.054
Brancos 166
Alagoas
Negros 1.702
Brancos 60
O Rio de Janeiro,
apesar de os números totais terem diminuído em dez anos – como em São
Paulo –, apresenta características peculiares:
Negros 2.512
Brancos 966
Ou seja, não há
genocídio de jovens negros, não há racismo nos números. O que há é uma
situação circunstancial na qual os criminosos comuns vêm das regiões
mais periféricas, onde está a esmagadora maioria da população
miscigenada; que são, enfim, os brasileiros. Racializar isso é o mesmo
que dizer que no Japão a maioria dos criminosos é japonesa. É, no
mínimo, exagero ideológico; mas, no fim das contas, é racismo, mesmo.
Sem contar que as
características de quem mata e quem morre são as mesmas: negro, jovem,
da periferia. Mas, como uma parcela baixíssima de crimes são
solucionados no Brasil, as informações sobre os criminosos foge à
estatística. No entanto, há dados que inferem essa ligação, como afirma
o próprio Nexo Jornal e um relatório recente do IPEA,
que diz: “os jovens aparecem nos dois lados da equação de crime, como
vítimas e como perpetradores”. Mas esses dados não interessam aos
ideólogos, não é mesmo?
E mais: os políticos e
os empresários corruptos, presos pela Polícia Federal nos últimos anos,
estão aí para nos mostrar que bandidagem não é determinada pela classe
social (ou pela cor), mas pela falta de caráter e pela ganância.
Em 2015 tive um
entrevero com uma famosa animadora de micaretas brasileira, por conta de
um tuíte seu cujo racismo flagrante, por detrás das boas intenções, fiz
questão de denunciar. Dizia seu texto, compartilhando uma matéria
contra a redução da maioridade penal de um blog de extrema-esquerda:
“diminuir a maioridade virou bandeira de cidadãos e políticos
preconceituosos que querem exterminar os pobres e pretos”. Ou seja, a
celebridade de trios elétricos, ao repetir a fórmula dos
pseudodefensores de minorias – que eu costumo chamar, carinhosamente, de
senhores de engenhos ideológicos –, acabou por associar a criminalidade
à raça e à condição social. Ou seja, cometeu racismo e discriminação
social. Ninguém se torna criminoso por ser negro ou pobre. Essa relação
não é verdadeira, e vários estudos o comprovam.
O elitismo dessa
gente, associado a uma falsa compaixão pelos mais pobres, que são os
mais vitimizados pelas ideologias desses intelectuais ungidos – para
usar a expressão de Thomas Sowell –, é algo sem precedentes.
Nos rincões de
pobreza desse país, quantos pais e mães não levantam cedo para
trabalhar, pagam uma fortuna em impostos que só os fazem empobrecer
ainda mais – assaltados pelo Estado assistencialista –, mas nunca
pensaram em subtrair a propriedade alheia? Gente que só precisaria se
ver livre das amarras de populistas canalhas, corruptos e ideólogos para
prosperar. Quantos jovens da periferia não se esforçam para suplantar a
vida difícil que os pais tiveram para que eles pudessem ter melhores
oportunidades? É um desrespeito atroz chamar essas pessoas de exceção
simplesmente porque não sustentam narrativas ideológicas. Exceção é ser
pobre e criminoso.
Há ainda a questão
salarial, também racializada para fins ideológicos. É o mesmo princípio:
se os mais pobres são os negros – por conta de nosso histórico
escravista –, e se os negros têm menos curso superior e menos tempo de
profissão, é evidente que terão salários menores – por esses e mais uma
série de fatores que não aceitam simplificações. A esse respeito não é
necessário me alongar, uma vez que já escrevi sobre isso na introdução a
um vídeo do grande Thomas Sowell, legendado pelo Tradutores de Direita,
que responde ao questionamento de uma feminista – o texto está na
apresentação do vídeo (ver aqui).
As cotas são um placebo do qual não tratarei aqui, agora.
Já o racismo é uma
estupidez que acomete indivíduos e não grupos. Cumpre combatê-lo dentro
de suas manifestações específicas, não com leis e tentativas de
conscientização para aquilo que não está na consciência.
As saídas mais
honrosas e duradouras para diminuir a desigualdade social são a
liberdade individual e econômica – que estimulam o empreendedorismo – e a
educação básica de qualidade, que prepara o indivíduo para a
universidade, mas também para o próprio empreendedorismo. Não há mágica e
nem atalhos, só o trabalho árduo e a prosperidade que advém dele
(quando não somos assaltados pelo governo), aliados ao preparo
intelectual de base e à prudência, podem mudar o destino dos negros e
pobres do Brasil. Só o rigor da lei para punir os criminosos, aliados a
uma estrutura que estimule à ordem e à família, podem livrar o jovem da
periferia da sedução do dinheiro fácil. A urgência que os ideólogos
demonstram por querer resolver essas questões, dizendo que não podemos
esperar mais algumas décadas, só lhes dá a vantagem de se associarem a
uma causa – e lucrarem com ela. Não é altruísmo, é luta política; não é
amor ao oprimido, é desejo de poder.
Termino com três
valiosos ensinamentos a esse respeito; um de Booker T. Washington
(1856-1915) – que nasceu escravo e se tornou um dos maiores educadores
da história americana; outro, do reverendo Martin Luther King Jr.
(1928-1968), o grande líder do movimento pelos diretos civis dos negros
americanos, na década de 1960; e o terceiro, do nosso André Rebouças
(1838-1898):
“Uma raça deve elevar-se ou decair, ter sucesso ou fracassar, e, em última análise, o sentimentalismo conta muito pouco. Durante os próximos 50 anos ou mais, minha raça deve continuar passando pelo severo calvário americano. Devemos ser testados em nossa tolerância, nossa paciência, nossa perseverança, nosso poder de suportar o mal, resistir às tentações, economizar, adquirir e usar habilidade; em nossa capacidade de competir, de ter sucesso no comércio, de desconsiderar o superficial pelo real, a aparência pela substância, por ser grande e ainda pequena, erudita e ainda simples, alta e ainda serva de todos”. (Booker T. Washington, 1901).
“Além de todas as
vantagens, um grande número de mudanças psicológicas positivas
inevitavelmente resultará de uma segurança econômica mais ampla. A
dignidade do indivíduo florescerá quando as decisões que dizem respeito à
sua vida estiverem em suas próprias mãos, quando tiver a segurança da
estabilidade e a certeza de sua renda, e quando souber que tem os meios
para buscar melhorias para si”. (Martin Luther King Jr., 1967).
“Dentro dos círculos dos seus direitos, cada cidadão é, deve ser, tem perfeitamente o direito de ser, pela nossa constituição e pelas nossas leis, um Estado; uma companhia, uma associação, soma os círculos dos direitos dos cidadãos que a compõem; o seu círculo de direito é o círculo máximo, que circunscreve o círculo de todos os seus associados; esse círculo é naturalmente maior e mais forte; e é por isso que causa assombro, que causa medo, e que causa terror aos oligarcas, que querem um povo fraco e subdividido: um povo de carneiros, tosquiável ao seu livre arbítrio, incapaz da menor resistência! Não permita o Onipotente que tão miserável espetáculo jamais seja visto no Brasil. Possa bem, pelo contrário, a nossa cara pátria cumprir a grandiosa missão que lhe destinou o Criador, pela iniciativa individual e pelo espírito de associação, filhos sublimes da liberdade”. (André Rebouças, 1883).BLOG ORLANDO TAMBOSI
Nenhum comentário:
Postar um comentário