Fiscal do Inmetro preso na Operação Pesos e Medidas. |
O delegado se infiltrou
na Superintendência do Inmetro, em Goiânia, e, aos poucos, foi obtendo
confiança da máfia que forjava fiscalizações em postos de gasolina.
Reportagem da revista Época:
Em 14 de julho deste
ano, Michel Silva cruzou o portão de grades baixas enferrujadas da Rua
148, sem número, para seu primeiro dia de trabalho na sede da
Superintendência do Inmetro, em Goiânia. Nomeado para um cargo, Michel
trazia em seu currículo um apadrinhamento político do PRB que o tornou
bem-vindo na repartição. O rapaz, não mais de 40 anos, iniciou um curso
de formação para poder atuar como técnico de metrologia e fiscalizar
postos de combustíveis no estado. Boa-praça, articulado, em pouco tempo
Michel não só cumpria sua nova tarefa, como foi convidado a integrar o
grupo que comandava um esquema de corrupção e cobrança de propinas em
postos de gasolina de Goiás. Instituto federal ligado ao Ministério da
Indústria, Comércio Exterior e Serviços, o Inmetro tem, entre outras, a
missão de fiscalizar as bombas de combustíveis para que o consumidor
receba no tanque o que pagou em litros. Apenas em Goiás, há 1.620
postos, com bombas que precisam ser calibradas periodicamente. Era aí
que Michel e a gangue atuavam, inventando multas por problemas
inexistentes e exigindo um pedágio para não formalizá-las. A vida de
barnabé corrupto escondia uma identidade secreta. Por trás do codinome
Michel estava um delegado da Polícia Federal (cujo nome tem de ser
preservado) que se infiltrara no órgão federal em uma missão sigilosa
com outro tipo de fiscalização em mente: a dos servidores do órgão
suspeitos de achacar donos de postos de combustíveis no estado.
ÉPOCA teve acesso aos
documentos sigilosos da investigação, uma das pioneiras no uso de
agentes infiltrados. Em uma trama com um quê do filme Donnie Brasco, de
1997, interpretado por Johnny Depp, que retratou a vida do agente do FBI
que se infiltrou na máfia em Nova York, uma estrutura de inteligência
foi mobilizada. O Núcleo de Inteligência da Polícia Federal em Goiás,
dois juízes federais e duas unidades da Procuradoria da República no
estado atuaram no episódio que levou à criação e ao monitoramento do
personagem que conseguiu assumir o cargo graças a uma decisão judicial. A
medida da Justiça corrigia a nota que o verdadeiro Michel Silva havia
obtido em um concurso para o órgão realizado em 2015. O fato chamou a
atenção de outros servidores e, por isso, Michel espalhou a versão de
que possuía indicação política por trás. O Donnie Brasco tupiniquim não
poderia existir sem este incremento: um funcionário público com padrinho
político.
A história do
delegado da Polícia Federal no órgão durou 71 dias. Michel pôde se
aproximar das entranhas da corrupção envolvendo servidores públicos
federais. Ele conseguiu declarações de seus colegas temporários
admitindo que a cobrança de propinas, de R$ 200 a R$ 6 mil, era uma
prática comum entre os responsáveis pela fiscalização do Inmetro. O
trabalho culminou na Operação Pesos e Medidas, desencadeada pela Polícia
Federal na terça-feira (17). Em um diálogo de 11 de setembro, o
infiltrado conversa explicitamente sobre propinas com um fiscal do órgão
identificado como “Fernando”. “Corro risco de algum outro metrologista
me colocar numa fria? De ele me envolver e eu sair dali algemado?”,
indagou Michel. O interlocutor sugeriu cautela, mas lhe deu senha para
prosseguir.
Michel mapeou
meticulosamente a estrutura do órgão e os locais onde a PF poderia
encontrar provas das irregularidades, como os computadores em que eram
registradas as fiscalizações fraudadas. Vantagem considerável para os
investigadores em tempos nos quais os grampos da Lava Jato acenderam o
alerta nos corruptos. “Os mecanismos tradicionais de investigação estão
se exaurindo, como os grampos telefônicos. Hoje em dia ninguém mais usa
celular, as pessoas usam aplicativos como WhatsApp e Telegram (que não
são pegos em grampos), e essa é uma ferramenta nova de investigação que
permite driblar isso”, comentou o procurador da República responsável
pela investigação, Raphael Perissé.
Risco a que todo
infiltrado está sujeito, o delegado teve de cometer crimes. Em
fiscalizações de radares de velocidade instalados em rodovias, serviço
que também está no escopo do órgão, por ordem de seu superior no
Inmetro, ele alterou as leituras de aparelhos fiscalizados para que elas
batessem com os dados enviados pelas empresas que geriam os
equipamentos. Na prática, ele deixou de checar se alguma infração havia
passado batido pelas empresas que administram os radares. No papel de
infiltrado, contudo, Michel estava protegido pela lei e não pode ser
punido. Toda a atividade de Michel era reportada em relatórios semanais
encaminhados à Justiça e ao Ministério Público.
Em um dos momentos
mais tensos, Michel pediu e conseguiu autorização judicial para andar
armado, já que alguns integrantes da quadrilha que achacava os postos
carregavam armas. O Núcleo de Inteligência da Polícia Federal recomendou
ao delegado que encerrasse a infiltração porque o delegado saía em
missão de recolher propina com s a gangue armada. Em uma manifestação
encaminhada à Justiça em setembro, Michel reconheceu que estava “sob
perigo concreto”. Mas desobedeceu à recomendação da Inteligência “haja
vista que não se me afigura que haverá outra melhor sorte na colheita de
provas do ilícito que se investiga, o que justifica o sacrifício de
vidas”, afirmou.
Seu último dia de
infiltrado foi 23 de setembro. Dois dias depois, a Polícia Federal refez
os caminhos dos fiscais corruptos atrás dos donos de postos que pagavam
propina e não concordavam com o esquema. Muitos tiveram medo de falar
com as autoridades, mas ainda assim a PF conseguiu o depoimento de seis
deles nos municípios de Goiânia, Goianira, Caturaí e Anápolis. Sete
fiscais e três donos de postos foram presos na operação. A articulação
da Polícia Federal em Goiás para a ação de Michel começou ainda em 2016
durante uma investigação iniciada em dezembro de 2014, a partir do
depoimento da proprietária de um posto de combustível em Anápolis.
Temendo represálias, ela depôs anonimamente, confessou pagar propinas a
fiscais do Inmetro havia 15 anos e disse que vários fiscais e até o
chefe de fiscalização do Inmetro em Goiânia estavam envolvidos no
esquema. A Polícia Federal começou a monitorar os fiscais suspeitos. Em 2
de dezembro de 2016, contudo, a PF viu sua investigação ameaçada porque
dois fiscais do Inmetro, Divino Antônio da Silva e Carlos Alberto
Araújo, foram presos em flagrante pela Polícia Civil ao achacar um dono
de posto em Goianira, no interior do estado. Os dois foram soltos após
oito dias. Pouco depois os fiscais de Anápolis descobriram uma das
escutas implantadas pela PF em um veículo do órgão usado por eles. Os
dois episódios deixaram a quadrilha em alerta máximo e podiam impedir o
aprofundamento das investigações. Era hora de acionar o dispositivo
agora permitido por lei e infiltrar alguém entre os criminosos. Michel
foi chamado.
A investigação com o
uso de um policial federal infiltrado só foi possível graças à Lei das
Organizações Criminosas, de 2013. A nova legislação ficou conhecida por
regulamentar as delações premiadas que permitiram à Lava Jato atingir a
cúpula do poder político. Diferentemente das colaborações, contudo, os
agentes infiltrados só podem ser utilizados quando não houver outra
forma de conseguir provas. Lançar mão deles representa um risco muito
maior aos investigadores, como ficou registrado no caso de Michel. O
procurador-geral do Inmetro, Daniel Almeida de Oliveira, informou que o
órgão sempre esteve aberto a auxiliar nas investigações, mas que a
denúncia de irregularidades veio de fora do Inmetro e a investigação
estava em segredo de Justiça e, por isso, o órgão não pôde fazer nada
até então.
A PF não comenta
investigações em andamento. A advogada Ana Paula Aris, que defende os
fiscais Carlos Alberto Araújo e Divino Antônio da Silva, classificou a
prática como uma forma de “coroar a traição”. “A infiltração de agentes é
o método mais invasivo de investigação. Envolve conquista de confiança e
é coroada com a traição, é absolutamente desleal”, disse. O
instrumento, ainda novo no Brasil, começa a ser posto à prova.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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