A crônica de Alberto Gonçalves, publicada pelo Observador: "Portugal
é para os portugueses, sobretudo portugueses da utilidade do sr. Xula e
do dr. Medina. Logo que o turismo acabe a aventura da nação valente (e
imortal) não terá limites, fora os da bancarrota":
Portugal já era
fortíssimo no turismo de tédio, no qual se contam rotundas, ou se passa
horas nas filas dos supermercados, ou simplesmente nos deitamos na praia
a atribuir formas reconhecíveis às nuvens (“Olha, aquela é igualzinha a
um helicóptero Kamov. E aquela parece mesmo o prof. Marcelo a posar
para uma ‘selfie’ com a selecção nacional de canoagem feminina”). Agora,
o país aposta (como sucede sempre que há hipótese de se ficar sem um
tostão, somos peritos em “apostar”) no turismo de aventura.
A Wikipedia associa o
turismo de aventura a “algo diferente, ao desafio, a certo risco capaz
de proporcionar a sensação de prazer, liberdade e superação pessoal, que
varia de acordo com a expectativa de cada pessoa e do nível de
dificuldade de cada atividade”. A Wikipedia não refere a valiosa
contribuição nacional para o sector. A vontade de oferecer emoções
intensas aos forasteiros teve início há muito, embora a uma escala
modesta. Historicamente, o turismo de aventura limitava-se, por exemplo,
aos clientes dos taxistas que pediam 72 euros por uma viagem da Portela
ao Chiado. Na última ocasião em que estive de férias no Algarve, na
pouco saudosa Primavera de 1995, consegui descobrir um café que a cada
manhã aumentava o preço do café e do pastel de nata, numa vertigem
inflacionária sem rival desde a Alemanha de 1933 e a Venezuela de 2017.
Hoje, o conceito actualiza-se e, dado que beneficia de circunstâncias
particularmente favoráveis, alastra-se.
O que não faltam por
cá são indivíduos e entidades empenhados em submeter o turista a
desafios únicos e emocionantes, a começar pelas demoras na área de
chegadas dos aeroportos. Esta semana, o Observador e o site “New In
Town” contaram a história do Made in Correeiros, o restaurante lisboeta
que cobra 50 euros por garrafa de Cartuxa, 120 por um bacalhau com natas
e 250 por um “misto de marisco”. É “misto” porque um quinto são frutos
do mar e os quatro quintos restantes uma burla das antigas. Ou, para
sermos exactos, das modernas. O Observador acrescenta que o proprietário
da casa é um carteirista reformado e se chama, obviamente, Xula.
Das duas grandes
teses vigentes acerca do turismo de massas, a primeira envolve a tal
ideia de aventura e consiste justamente no que os académicos
credenciados designam por “xulanço” (os puristas optam pelo “ch”).
Resumindo para leigos, implica apanhar o “camone” desprevenido e
sacar-lhe a maior quantidade de euros possível no menor período
possível. É uma actividade reservada a instituições particulares como o
sr. Xula ou públicas como a dona Câmara de Lisboa, que diariamente
fabrica novas taxas e taxinhas que estimulam a adrenalina do turista e
garantem que, a não ser nos casos de masoquismo terminal, o infeliz não
regressa a semelhante choldra.
É aqui que a primeira
tese sobre o turismo se encontra, num radioso caldo de portugalidade,
com a segunda principal corrente de pensamento na matéria. Uma enxota o
visitante porque o quer roubar. A outra quer enxotá-lo de qualquer
maneira. Esta, o “movimento” de “defesa” do comércio “tradicional”, dos
bairros “típicos” e dos sonhos da irmã de Paulo Portas, é representada
pelo tipo de gente que entra em pânico mal vê alguém cometer a heresia
de ganhar uns trocos que não sejam atribuídos pelo Estado. É o momento
de introduzir um parêntesis e uma homenagem à Catalunha.
Em Barcelona, uma
espécie de laboratório de inúmeras demências contemporâneas, tornou-se
pelos vistos costume atirar pedras a autocarros de turistas, em protesto
contra o excesso destes e, cito o “Expresso”, a “ameaça” à “qualidade
de vida”. Os autóctones furiosos deviam erguer-me uma estátua: por
motivos diversos, nunca me ocorreu maçá-los com a minha presença e,
salvo um azar enorme, palpita-me que tal afronta jamais acontecerá. Na
minha lista de paraísos a visitar, Barcelona situa-se ainda abaixo de
Cabul, da Eritreia e do Chapitô. O pormenor não impede que as maluquices
locais inspirem cidades distantes: no início do mês, a autarquia de
Lisboa proibiu a circulação de autocarros turísticos na dita “zona
histórica”.
É uma alternativa
subtil aos apedrejamentos. É também uma medida de protecção de referida
“qualidade de vida”, para que a capital e o país retornem à época em que
vivíamos confortável e exclusivamente do produto do nosso labor, sem o
dinheiro sujo e a balbúrdia que os estrangeiros largam por aí. Os
estrangeiros são uma praga, que urge controlar na teoria e erradicar na
prática. Xenofobia? Xenofobia é, sei lá, contestar muçulmanos que fogem
do islão e desejam, assaz legitimamente, reproduzir o islão entre nós.
Escorraçar espanhóis, alemães, americanos, coreanos e ingleses
interessados em comprar-nos bens e serviços, de preferência após
assaltá-los à mão desarmada, é mero civismo. Portugal é para os
portugueses, sobretudo portugueses da utilidade do sr. Xula e do dr.
Medina. Logo que o turismo acabe, a aventura da nação valente (e
imortal) não terá limites, excepto os da bancarrota.
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