A história da Guerra Civil Americana está vivendo mais um capítulo, escreve Vilma Gryzinski na edição impressa de Veja:
Pode não ser justo,
mas é quase inevitável avaliar o passado pelos padrões do presente e
usar o presente para reescrever o passado. De muitas maneiras, é isso
que está acontecendo nos conflitos em torno dos monumentos e lugares
públicos que homenageiam os vencidos na Guerra Civil americana. No
destino da estátua do general Robert E. Lee, o maior de todos os
vencidos, é projetada uma briga muito atual: quem fala em nome da
maioria dos americanos.
Certamente não os
supremacistas brancos nem os black blocs que se espancaram em
Charlottesville, embora representem versões maniqueístas da opinião do
resto do país. Para os primeiros, interessa usar a queda da estátua do
general que comandou o exército dos onze estados secessionistas do Sul
como uma ofensa brutal a todos os brancos americanos que, pelos
princípios da repugnante causa que defendem, consideram superiores e
ameaçados. Para os segundos, derrubar o monumento é uma etapa da luta
contra um “sistema” injusto. Incluindo, evidentemente, o regime
democrático que, com todas as suas imperfeições, permitiu aos americanos
superar uma guerra fratricida, com 650 000 mortos, entre 1861 e 1865.
Uma das maneiras de
acomodar vencedores e vencidos foi deixar que estes cultivassem a
narrativa da Causa Perdida. Nesta, a secessão e a guerra, motivadas
primordialmente para manter o sistema escravocrata que existia no Sul,
transmutaram-se numa causa nobre, idealista e tragicamente fadada à
derrota pela inferioridade numérica. Robert E. Lee, o patrício que
assinou a rendição a seu ex-camarada de Exército, o menos elegante e
futuro e pouco inspirado presidente Ulysses S. Grant, tornou-se alvo de
veneração. A bandeira confederada eternizou-se nas varandas, em
instituições públicas e nas jaquetas dos motoqueiros. Como a história é
sempre mais complicada, Lee não foi inteiramente um nobre e galante
herói nem inteiramente um brutal vilão escravocrata.
Em 17 de junho de
2015, quando Dylann Roof, um loiro de franjinha adepto do supremacismo,
entrou numa igreja evangélica de Charleston e matou nove pessoas porque
eram negras, a acomodação sofreu um sobressalto. A governadora da
Carolina do Sul, Nikki Haley, decidiu tirar da sede do governo a
bandeira confederada. Na época, 57% dos americanos diziam que a bandeira
é um símbolo do orgulho sulista e não de racismo.
Hoje, Nikki Haley,
filha de indianos, é embaixadora na ONU. Defende com equilíbrio e
eloquência posições da direita tradicional. Mora na residência oficial
relacionada a seu cargo, no 42º andar do hotel Waldorf Astoria, em Nova
York. Dylann Roof ocupa uma cela numa prisão federal em Indiana. Foi
condenado à morte. A estátua do general Lee continua no parque de
Charlottesville. Poderia ser melhor para os americanos se todos
permanecessem onde estão, no tempo da política, da justiça e das
estátuas. A complicação: como não deixar parte da população com o
sentimento de que sua história está sendo expurgada ou outra com a
sensação de que a celebração do passado implica validação de princípios
que deveriam estar sepultados?
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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