A rua passa a ser vista pela janela. Exercícios físicos, visita a parentes e até refeiçõe[s se tornam atividades acompanhadas por policiais armados. A rotina, semelhante a de um bandido atrás das grades, é vivida, na verdade, por magistrados ameaçados de morte. Nos últimos 12 meses, 13 juízes mineiros precisaram de escolta 24 horas por dia e, mesmo agindo conforme a lei, se tornaram prisioneiros nas próprias residências.
Não bastasse a proteção em tempo integral, mais de uma dezena de magistrados são monitorados, atualmente, pela assessoria militar do Tribunal de Justiça de Minas Gerais (TJMG) e podem necessitar da escolta a qualquer momento.
“Fiquei isolada, presa, desprovida de intimidade. Parei de frequentar ambientes que não eram forenses. Mas não me arrependi da escolha da minha profissão. Encarei como um desafio” (juíza Marixa Rodrigues)
O cenário de medo e a condição de confinamento de juízes brasileiros são retratados no filme Foro Íntimo, lançado recentemente no Festival Internacional de Boston (EUA). O longa-metragem foi gravado no Fórum Lafayette, em Belo Horizonte. Nele, um magistrado mineiro chegou a viver “preso” para fugir de criminosos que o ameaçavam. A história, porém, se repete em vários lugares de Minas e do país.
Rotina sufocada
Conhecida por ter presidido o júri dos acusados da morte de Eliza Samudio, entre eles o goleiro Bruno Fernandes, a juíza Marixa Rodrigues foi escoltada durante um ano e meio por conta de ameaças recebidas. A magistrada evitar dizer se as intimidações têm relação com o caso. “Eles foram presos em 2010 e comecei a ser escoltada em 2011. Eu me sentia totalmente sufocada porque ficava com policiais o tempo todo”.
Marixa deixou de fazer tudo o que gostava, como caminhada e ir a shows, restaurantes, academia e salão de beleza. A vida dela era ir de casa para o trabalho, e vice-versa. Até o sítio da família, onde costumava ir, ficou abandonado. “Era uma neura tão grande dos seguranças que parei de ir. Segundo eles, no local eu estava mais vulnerável”, relembra.
Na porta da casa da juíza, uma viatura em tempo integral. Quando Marixa estava no tribunal, lá também se encontravam os policiais. Em dias de alerta, Marixa levava o filho para a escola com dois agentes no mesmo carro, seguido por uma viatura. A operação assustava os pais dos outros alunos. “Passei a evitar levá-lo na escola. Os homens armados chamavam a atenção”, conta.
Variável
Dados do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), de 2016, apontavam 131 magistrados em situação de risco no Brasil. Na época, eram três em Minas. Mas os números mudam rapidamente, frisa o chefe da assessoria militar do TJMG, coronel Fabiano Villas Bôas. Atualmente, segundo ele, dois juízes estão sendo escoltados no Estado.
“Nem toda avaliação de risco gera uma escolta, que é o último mecanismo e vem depois de medidas de segurança como acompanhamento a distância e levantamento da área de inteligência. Hoje, temos mais de dez juízes sendo monitorados em Minas”, diz Villas Bôas.
Cautela
Para quem escolheu seguir a magistratura, a ordem é a precaução. Cartilha da Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB), lançada em abril, alerta para a vigilância constante no local de trabalho, em casa, no carro e telefone.
“É uma profissão de risco, que demanda cuidados em todos os momentos”, reforça o autor da publicação, o secretário-adjunto de Segurança da entidade, desembargador Wanderley Paiva.
Vida sem sossego ao combater o crime organizado
Em duas décadas atuando como juiz, Narciso Alvarenga Monteiro de Castro já recebeu inúmeras ameaças. O que não sabia era que a rotina dele e da família seria totalmente alterada após desengavetar o processo da suposta atuação de uma máfia de transplantes de órgãos em Poços de Caldas, no Sul de Minas.
Profissionais influentes da cidade estavam na mira da Justiça. Havia indícios da retirada de órgãos de pacientes mortos sem autorização prévia. Os crimes chocaram a população.
Ao retomar o caso, Castro começou a sofrer intimidações e viveu escoltado de 2011 a 2015. “Quem trabalha em algum momento para combater o crime organizado, como eu fiz, nunca mais tem sossego. Não dá para desligar nunca. Eles fazem questão de se mostrar presentes para que eu nunca mais me esqueça que estão por perto”, relata.
Abandono
O juiz não fala mais sobre o processo, que já está encerrado. Mas se lembra bem como a rotina da família mudou. Policiais armados acompanhavam Castro o tempo todo. Ele parou de sair e abandonou as atividades que mais gostava, como jogar futebol e visitar amigos e familiares.
Família
Além de dois filhos menores, a família tinha um bebê na época. “A escolta era só para mim. Quando eu saía para trabalhar, minha esposa e meus filhos ficavam sob risco em casa”, conta.
“Recebemos ameaças todos os dias. Umas mais graves, outras menos. Mas o objetivo delas é sempre o mesmo: que você deixe o processo em que está trabalhando. Tomo cuidados, mas sigo meu trabalho de forma tranquila” (juiz Narciso Alvarenga)
Bandidos deixavam bilhetes debaixo da porta da residência e até abordavam a mulher do juiz, batendo no vidro do carro dela. “Passavam recados. Até em uma viagem ao exterior tivemos situações de alerta”. Com tanta pressão, ele desenvolveu estresse pós-traumático e foi obrigado a buscar tratamento. “Ninguém sai da mesma forma quando passa por isso”.
Intimidações afetam magistrados de todas as comarcas
Ameaças a juízes são situações comuns em todas as comarcas do Estado. Além dos casos mais graves acompanhados pelo TJM[/TEXTO]G, outros inúmeros magistrados sofrem, diariamente, pressões psicológicas feitas por condenados e familiares dos presos. Avaliadas como ônus da escolha da profissão, essas histórias, muitas vezes, não são denunciadas e passam alheias às estatísticas.
“O enfrentamento a nós magistrados tem sido maior por causa do crescimento das organizações criminosas”, afirma o juiz da Vara de Execuções Criminais de Contagem, na Região Metropolitana de Belo Horizonte (RMBH), Wagner Cavalieri, que também é integrante do Conselho Deliberativo da Associação dos Magistrados Mineiros (Amagis).
Segundo ele, a sensação de insegurança afeta praticamente toda a categoria. Porém, tende a ser maior em profissionais que atuam nas comarcas próximas às grandes unidades prisionais ou nas fronteiras do Estado, consideradas áreas mais perigosas. Os juízes criminais são os mais visados, principalmente os que julgam processos relativos ao tráfico de drogas.
De todas as formas
Cavalieri, por exemplo, foi vítima de pelo menos dez ameaças mais graves nos 20 anos em que atua. “No telefone pessoal, em audiência. Inclusive, o serviço de inteligência do TJ já detectou insinuações e planos de atentado contra a minha vida”, lembra. No ano passado, ele chegou a ser escoltado durante 40 dias.
Mas a mudança de rotina não é o maior incômodo, afirma o magistrado. Segundo Cavalieri, a falta de compreensão da população é um grande problema. “Esperamos que o Estado nos dê suporte quando passamos por esse tipo de situação. Afinal, estamos nela por causa da sociedade. Mas nem todo mundo entende a necessidade de certos cuidados com juízes em nome da nossa segurança”, desabafa.
“Já tive que mudar rotinas, horários, ser escoltado. Mas quando escolhi minha profissão sabia dos riscos. Quando me deparo com essa situação, espero sempre que o Estado me dê um amparo. E sigo” (juiz Wagner Cavalieri)
Cavalieri relembra as críticas feitas por alguns vizinhos quando solicitou a transferência do ponto de ônibus em frente à casa dele. Para o juiz, o espaço permitia a alguém acompanhar a rotina do magistrado. “Por isso pedi que mudassem o ponto, o que foi visto como mera implicância minha”.