Para o editor Carlos
Andreazza, a sentença proferida por Moro é uma "aula de reconstrução
cronológica, preciosa e precisa em roteirizar o que se passou. A saber,
porém, se definitiva também como peça condenatória". Artigo publicado no
jornal O Globo:
A sentença por meio
da qual Sergio Moro condenou Lula precisa ser lida pelo brasileiro que
quiser entender o país em que vive. Está tudo ali. O texto é obra-prima
da interpretação; mas pretende desmontar — tecnicamente — a politização
dos processos promovida tanto pela defesa do ex-presidente quanto pelo
Ministério Público. Não terá sido tarefa fácil, dada a qualidade da
denúncia que recebeu. Significativo é, pois, que o juiz se negue a
tratar — explicitamente — de organização criminosa ao mesmo tempo em que
a evidencia na costura de delações, testemunhos, documentos e
circunstâncias. A sentença é aula de reconstrução cronológica, preciosa e
precisa em roteirizar o que se passou. A saber, porém, se definitiva
também como peça condenatória.
O ano-chave para se
compreender a associação entre Lula e o tríplex é 2009. Ele ainda era
presidente da República. Até 15 de setembro, Lula e Marisa haviam pagado
50 de 70 prestações relativas à aquisição de uma unidade simples no
então Residencial Mar Cantábrico. O projeto imobiliário era da Bancoop,
presidida por João Vaccari Neto, futuro tesoureiro do PT. Menos de um
mês depois, em 8 de outubro, a Bancoop transferiria os direitos sobre o
empreendimento à OAS — que o renomeou: Condomínio Solaris.
A partir de 27 de
outubro de 2009, com prazo de 30 dias, os cooperados da Bancoop teriam
de optar entre celebrar novo contrato, doravante com a empreiteira, ou
pedir restituição de dinheiro. Lula e Marisa, entretanto, nem se
manifestaram a respeito nem voltaram a pagar parcelas. Somente no final
de 2015, com a Lava-Jato na rua — Léo Pinheiro, presidente da OAS, fora
preso em novembro de 2014 — e a história já pública, formalizariam a
desistência. No curso desses seis anos, jamais a construtora ou a
cooperativa pressionaram para que se decidissem. No curso desses seis
anos, contudo, o apartamento equivalente à unidade a que haviam aderido
foi vendido. Apenas um imóvel do Solaris nunca seria posto à venda: o
tríplex — que, conforme documentos da empreiteira, estava reservado.
Tragamos Vaccari de
volta, elemento cuja ação obscura ilumina o entendimento da negociata
pela qual Lula foi condenado; trama em que a propriedade no Guarujá é
sobra — franja para agrado pessoal — do complexo corruptivo que
sustentou o projeto de poder petista.
A OAS participou do
esquema que saqueou a Petrobras durante os governos petistas. Em 2008,
segundo relato de Léo Pinheiro, Vaccari o procurou para tratar do
pagamento ao PT de 1% sobre o valor do contrato firmado para a
construção da refinaria de Abreu e Lima. A operação ocorria — desde o
início da gestão de Lula — sob a guarda de uma conta-propina do partido
junto à empreiteira.
A transação por meio
da qual o condomínio foi transferido à construtora não consistiu
simplesmente num bom negócio objetivo para a OAS, mas em concerto que
compunha o mutualismo criminoso em que se transformou, sob a
administração petista, a relação entre Estado e iniciativa privada no
Brasil, cujos expoentes são consultores como Palocci e campeões
nacionais como Joesley Batista. Em 2009, quando das tratativas para
transmissão do empreendimento, Vaccari contou a Pinheiro que havia uma
unidade de Lula no condomínio, sugeriu que seria interessante à
empreiteira assumi-lo, sobretudo em função da parceria entre a empresa e
o partido, e informou que ao então presidente caberia o tríplex, muito
mais caro — e não o imóvel simples pelo qual faltava pagar 20 parcelas.
Veio, no entanto, a
já histórica reportagem do GLOBO, publicada em março de 2010, que —
antes de existir qualquer investigação judicial — afirmava que o tríplex
pertencia a Lula e Marisa. A notícia alarmaria Pinheiro, que procurou
Vaccari e Paulo Okamotto. Queria saber sobre como proceder, uma vez que o
imóvel ainda estava em nome da OAS. Deveria vendê-lo? Não. A
determinação que recebeu foi para que o mantivesse reservado, oculto
como patrimônio da construtora. Era ano eleitoral — e Lula trabalhava
para eleger Dilma Rousseff. Aliás, sobre a transferência formal do
apartamento, Vaccari e Okamotto sempre foram claros ao pedir que
permanecesse em nome da empreiteira, com a qual o PT tinha sólida
ligação, vínculo de confiança graças ao qual podiam prescindir de título
de propriedade.
Só se voltaria a
conversar a respeito em 2013, com o ex-presidente já recuperado do
câncer. De uma reunião no Instituto Lula, em dezembro, derivariam a
visita do casal ao tríplex, no início de 2014, e as obras no imóvel. O
mais importante, porém, teria vez em meados daquele ano — novamente
eleitoral, o da reeleição de Dilma: Pinheiro enfim acertou com Vaccari
que a diferença de preço entre a unidade simples, pela qual se
desembolsara apenas parte, e o tríplex, assim como os custos com a
reforma do apartamento (e do sítio em Atibaia), seria descontada dos
créditos do PT junto à construtora. O tríplex reservado era bem material
extraído da conta-propina petista na OAS — traficância de titularidade,
portanto, impossível.
Moro desenhou sem papel.
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