A lei vale para todos,
reza o princípio jurídico. Diante dela, todos são iguais e merecem o
mesmo tratamento. Para o MP - especialmente para o procurador-geral
Rodrigo Janot -, nem sempre é assim. Comparece-se a situação de Joesley e
Marcelo Odebrecht: cometeram os mesmos crimes, mas receberam
tratamentos diferentes. Artigo do desembargador Aloísio de Toledo César,
publicado pelo Estadão:
Por muito tempo se
discutirá a gravação feita por Joesley Batista durante a conversa
privada que manteve com o presidente da República. Nós todos percebemos
que sua divulgação, sem o consentimento do interlocutor, teve
consequências dramáticas, tanto para o País como para os dois
protagonistas daquele infame episódio.
Mas restou um
ensinamento que merece ser destacado: a forma desigual como o Ministério
Público (MP), em especial o procurador-chefe Rodrigo Janot, trata
criminosos da mesma espécie. Veja-se que Marcelo Odebrecht e Joesley
Batista são iguais (farinha do mesmo saco, como diriam nossos avós) e
cometeram os mesmos e reprováveis crimes, daqueles que fazem virar o
estômago de cada um de nós. Porém, incompreensivelmente, receberam
tratamentos completamente diversos. Eles têm em comum a prática dos
mesmos delitos, sempre envolvendo pessoas públicas, e por isso choca que
um deles continue preso, ao mesmo tempo que o outro permanece em
liberdade, até com autorização expressa para sumir no mundo, se assim
quiser.
Veja-se que no caso
de Marcelo o MP cuidou de trancafiá-lo – e já com ele na cadeia expandiu
as investigações destinadas a apurar a prática de outros crimes. Essa
conduta do MP é adequada e por isso não houve censura alguma. Mas
veja-se: Marcelo vem colaborando, de trás das grades, e Joesley está
livre e solto, aqui, ali, nos EUA e em qualquer lugar.
Não é fácil
compreender as razões que levaram o procurador-geral a fazer com Joesley
um acordo danoso para o País e permitir-lhe a liberdade, para praticar
outros crimes. A desejada apuração de mais crimes proporcionada pela
delação nunca seria suficiente para absolvê-lo do mal que fez ao Brasil
durante tantos anos.
Ao beneficiá-lo e
deixá-lo livre, o procurador-geral assumiu conduta privativa de juiz,
porque somente o Judiciário tem o poder-dever de decidir se alguém vai
para a cadeia ou continua solto. Há evidências de que ocorreu o que em
Direito se chama res inter alios, ou seja, uma ação entre aliados com
fim espúrio. O Ministério Público não é o Estado, como reconheceu outro
dia o ministro Dias Toffoli, do STF, escandalizando os juristas.
É grave ter ficado a
impressão de que Joesley foi autorizado a gravar a conversa com o
presidente da República (sozinho ele faria aquilo?). Mesmo os mais
ingênuos entenderão que houve de fato um condenável conluio, ou seja, o
bandido gravaria a fala com o presidente e em seguida o procurador-geral
mostraria a coragem de propor ação penal contra o chefe do governo do
Brasil – entrando para a História.
As duas gravações,
com Michel Temer e com o senador Aécio Neves, têm a mesma cara e parecem
aquilo que os caipiras do interior paulista chamam de “coisa feita”.
Em entrevista à Globo
News, Rodrigo Janot defendeu-se e afirmou que a gravação da conversa
entre Temer e Joesley não foi combinada com o Ministério Público, mas
isso parece uma desculpa, porque gravar clandestinamente a fala do
presidente da República, independentemente do conteúdo, constitui
ilícito dos mais graves, que obrigaria o MP a promover sua
responsabilização penal. Ao permanecer indiferente, e ainda afirmar que
fez a coisa certa, propaga entre nós a ideia de que é possível gravar
conversa até mesmo com o papa.
Michel Temer pode ter
cometido muitos erros ao longo de sua vida pública, mas ao receber em
casa, naquela noite, um criminoso dos piores, cometeu certamente o mais
grave. Ele nunca conseguirá explicar por que razões, tarde da noite,
concordou em aceitar a visita do referido malfeitor.
O procurador-geral
também afirmou em sua entrevista que o Supremo Tribunal vem autorizando
gravações clandestinas naquelas circunstâncias, mas não é bem assim.
Sempre que uma pessoa, em comunicação com outra, comete o ilícito de
gravá-la, o conteúdo da conversa mantida entre ambas situa-se no âmbito
da privacidade, da intimidade dos interlocutores, e por isso está ao
abrigo do que diz a Constituição federal (artigo 5.º, LVI: “São
inadmissíveis, no processo, as provas obtidas por meios ilícitos”.
Esse meio de prova
ilícita ganhou feição tormentosa no Supremo, sendo admitida em alguns
casos, sobretudo quando se destina a provar a inocência do acusado. Mas,
em regra, a prova originariamente obtida como no caso Joesley/Temer é
ilícita por negar ao gravado o benefício do devido processo legal, do
contraditório e da ampla defesa, exigências da Constituição da
República.
Quando a prova é
obtida em razão de transgressão praticada, sua eficácia pode levar à
contaminação do próprio inquérito (aquilo que os americanos chamaram de
“a árvore envenenada”, ou seja, se o tronco está envenenado, todos os
galhos e folhas também estão).
Enfim, há ilicitude
quando um dos interlocutores faz gravação clandestina sem o conhecimento
do outro, em violação ostensiva do que dispõe o artigo 5.º, X, da
Constituição: “São invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a
imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano
material ou moral decorrente de sua violação”.
A revelação do
conteúdo de gravação clandestina afeta o direito à intimidade do
interlocutor que a desconhece. Assim, ainda que se considere lícita a
gravação, a revelação de seu conteúdo não o é, porque o que foi dito se
destinava somente aos interlocutores e a mais ninguém.
No caso em foco, o
que sugere ilicitude da conduta e da prova é o fato de o conteúdo,
privativo dos interlocutores, ter sido revelado não apenas a um ou
outro, mas a todo a Nação. Até mesmo quando a gravação revela um crime
há violação das normas constitucionais, porque ganha sentido de
confissão extrajudicial, sem atendimento às exigências dos Códigos Penal
e de Processo Penal.
blog ORLANDO TAMBOSI
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