Importa
insistir em ideias apresentadas neste espaço de opinião. As ordens
morais coletivas são férteis e sustentáveis no tempo, isto é, favoráveis
à estabilidade da vida quotidiana, ao desenvolvimento económico, a
avanços técnicos, culturais ou civilizacionais quando fundadas em
complexos de culpa coletivamente partilhados. Tal implica a saliência de
atitudes e comportamentos autoassumidos, genuínos e consequentes de
remorsos, arrependimentos e manifestação de culpas próprias quando as
práticas com as quais nos identificamos geram sofrimento em terceiros,
no passado ou no presente. Em “Totem e Tabu” (1912-1913), Freud
considera que esse sentimento de culpa manifesta-se nas práticas
simbólicas que regulam a vida das comunidades.i
Não
custa inferir que as práticas simbólicas com poder de regulação estão
hoje fortemente concentradas na ação política que, por essa razão, está
remetida para o âmago da ordem moral das nossas sociedades.
Subvertendo
as teses edipianas de Freud datadas de 1912-1913, o restante século XX e
o século XXI viram afirmar-se e tornar-se dominante o poder das
esquerdas, cuja génese ideológico-intelectual está fundada num referente
moral completamente diferente, o complexo de vitimização. Daí a
impossibilidade de uma ordem moral das esquerdas no sentido freudiano do
termo.
Não será
historicamente plausível que as esquerdas, das moderadas às radicais,
algum dia se libertem da sua génese patológica. A necessidade congénita
de falsificação do sentido da história e a atitude imperturbável face à
violência própria e dos seus (ao menos nisto a direita é
substantivamente distinta) materializa-se na canalização sistemática
para terceiros de responsabilidades próprias sobre o que é moralmente
incómodo. A substância mantém-se, mudando apenas os rótulos. As culpas
são do “imperialismo”, “colonialismo”, fascismo, norte-americanos,
“ricos”, “neoliberalismo”, natureza, forças do terreno, oficiais de
baixa patente ou do que der jeito.
Num
caldo ideológico-intelectual dominado pelo marxismo cultural, torna-se
muito difícil consolidar um qualquer sentido de civismo ou, em rigor, de
cultura cívica. Esta mais não é do que a arte do compromissos entre a
tradição e a modernidade, isto é, a arte de inovar sem romper com o que
se herdou. É esse o sentido que dois autores, Gabriel Almond e Sidney
Verba, atribuem à cultura cívica. Portanto, os ideais e práticas
revolucionárias situam-se nos antípodas do civismo.
Basta acrescentar mais dois ingredientes para perceber como tudo isso é uma ameaça infalível à dignidade e progresso dos povos.
Primeiro,
uma noção básica de política. Esta, na substância, mais não é do que
aquilo que resulta da relação entre o poder tutelar dos estados e as
respetivas sociedades. Nessa relação, quanto mais o estado pesa tanto
maior a autoridade e, em sentido contrário, quanto mais a sociedade pesa
tanto maior a liberdade.
É
necessário ser intelectualmente muito limitado para admitir que os que
defendem radicalmente o poder do Estado possam alguma vez ser, ao mesmo
tempo, defensores da liberdade dos indivíduos e da autonomia da vida
social, cultural ou económica. Tem sido o controlo dos sistemas de
ensino pelo marxismo cultural que vai transformando povos inteiros em
imbecis intelectuais. Assim é fácil disseminar patranhas.
Segundo,
vivemos dominados por instrumentalizações também nocivas de noções
elementares de sociedade e de instituição. Suponho ser consensual a
ideia de apenas existirem sociedades saudáveis quando nelas existem
instituições fortes. Mas para isso umas e outras não se podem confundir.
Sociedade e instituição são objetivamente opostas.
Para ser
simples, sociedade é uma entidade (ou espaço) aberta da qual ninguém
pode ser excluído e na qual, em princípio, tudo pode ser negociado.
Desde o tipo de governação à interdição da pena de morte, entre inúmeras
possibilidades. Por seu lado, existe uma parte fundamental das
sociedades que é institucionalizada. Neste caso, a instituição só faz
sentido se for uma entidade (ou espaço) tendencialmente fechada,
limitada aos agentes de dentro, com margens de negociação de obrigações e
direitos muito mais restrita e necessariamente governada de dentro para
fora.
O que
liga a instituição à sociedade é o facto de a última outorgar à primeira
a legitimidade de gerir funções específicas em benefício do coletivo. É
o caso da família, da religião, do ensino, das mais variadas
associações, dos clubes desportivos, da proteção civil, entre tantas
outras instituições. A sociedade, por seu lado, apenas se transforma em
estado no caso de instituições que tutelam funções de soberania, sendo
que haverá maior liberdade e um estado bem mais eficaz quanto mais
restritas forem as funções de soberania que diretamente tutela (defesa,
segurança, relações externas, justiça, impostos e pouco mais).
Os
equilíbrios entre sociedade e respetivas instituições têm sido
sistematicamente colocados em causa pelo poder avassalador do marxismo
cultural. Isto porque a sua génese permite que os que com ele se
identificam vivam de consciência tranquila e tenham as mãos livres para
todo o tipo de engenharias sociais. Na substância, estas traduzem-se em
intromissões abusivas e corrosivas, de fora para dentro, na vida das
mais variadas instituições.
Vimos
esse filme nos sistemas de ensino por via da promoção irresponsável da
abertura e aproximação entre a comunidade, a família e a escola, o que
sacrificou a função específica do ensino, a saber, a gestão de
conhecimentos científicos ou académicos num ambiente institucional
autorregulado. Vimos na justiça a partir do momento em que as tutelas
políticas passaram a brincar às engenharias sociais por via de uma
incontinente produção legislativa, o que corroeu até ao limite a
dignidade institucional do exercício da justiça. Vemos no episódio do
furto de armamento militar em Tancos, na senda de outros episódios que
têm mantido a instituição militar na praça pública, em resultado de
décadas de militares que se galanteiam enquanto políticos, mas não menos
de políticos que se viciaram na compra de votos à custa de um pacifismo
tão simpático quanto irresponsável, o que degradou seriamente a
dignidade institucional da função soberana da defesa. Vimos o mesmo
filme com a segurança interna quando a polícia foi forçada a suportar o
achincalhamento sistemático da sua autoridade institucional na praça
pública graças a disputas políticas e académicas em torno da proteção de
umas sacralizadas minorias étnico-raciais. Aconteceu com… etc, etc,
etc..
E tudo animado por uma comunicação social carnavalesca.
De resto, o filme de terror do marxismo cultural segue um guião invariável.
Primeiro,
corroem-se os circuitos económicos herdados. Porque se nacionalizam
empresas e propriedades. Porque se usa e abusa do ascende do estado
sobre a sociedade. Porque se aumentam as funções e responsabilidades do
estado para além do razoável na compra de suportes políticos e, depois,
só resta sobrecarregar as economias de impostos e dívidas,
fragilizando-as estruturalmente. Porque se arriscam engenharias sociais
que desregulam os circuitos económicos herdados, como aconteceu em
Moçambique em que, no tempo colonial, a economia de mercado e as
economias tradicionais africanas funcionavam em complemento sem grandes
atropelos e, com a independência, tudo foi estatizado em prol de um
modelo socialista estatizante homogéneo que desregulou tanto a economia
de mercado, quanto as economias tradicionais africanas, bastando para
tanto imaginar que as últimas têm valor equivalente ao papel das
pequenas empresas numa economia de tipo ocidental e, uma vez chegada a
fome e a guerra pós-coloniais em poucos anos com os seus milhões de
mortos, a culpa foi remetida para as heranças do “colonialismo”
português, para sabotagens dos países vizinhos governados por minorias
brancas, para o Ocidente e, quando foi necessário renovar a linguagem,
para as imposições do “neoliberalismo” e patetices do género.
Depois,
estranguladas as economias e condicionadas as liberdades, passa-se à
fase da desregulação sistemática das instituições, geridas como se se
tratassem dos espaços abertos das sociedades onde qualquer ativista
sente o direito de meter o nariz. As consequências perversas a este
nível tendem a ser extraordinariamente perduráveis no tempo.
Em
Portugal do século XXI, a relação moral patológica das esquerdas com o
legado desastroso do governo de José Sócrates e, descontado o intervalo
de uma legislatura, com o rumo preocupante do atual governo de António
Costa saltam à vista. O último resiste sem incómodos de consciência
significativos entre os seus apoiantes, mesmo por cima de dezenas de
cadáveres. Não se dá por remorsos, arrependimentos ou sentimentos de
culpa própria por se instigar e colaborar ativamente no naufrágio de um
país ao longo de bem mais de uma década. O socialismo nunca passará
disso.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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