A deturpação do
instituto da delação premiada, escreve Carlos Andreazza no Globo,
"comporá o legado de Janot é explicativa da desordem medida por meio da
qual se promovem justiçamentos":
É possível que, lá na
frente, quando as delações dos irmãos Batista resultarem em sentenças
formais contra os políticos ora investigados, o equilíbrio seja
restabelecido e o incontornável protagonismo dos petistas na construção
criminosa do império J&F reste afinal evidente e seja devidamente
punido. E daí? Até lá, enquanto seus adversários são condenados informal
e seletivamente, também é possível que Lula seja eleito presidente. E
aí?
Neste país, são
muitos os que investem na lentidão da Justiça. O próprio Lula, que só
não poderá disputar a Presidência em 2018 caso condenado em segunda
instância — e ainda não o foi sequer em primeira. Há também os que
capitalizam o efeito imediato — político — das denúncias distribuídas
tão irresponsável quanto metodicamente pelo ativismo judicial janotista.
De novo: o próprio Lula, líder da organização sob cujos auspícios se
elevou o campeão nacional Joesley. Ele mesmo, Lula, há mais de mês, no
entanto, escondido em notas de rodapé do noticiário.
Não se pode analisar o
que está em curso no Brasil senão sob leitura política. Tornou-se
estéril evocar questões de ordem jurídica para estudar o rumo da
Lava-Jato. O Supremo, por exemplo, autoenfraquecido pelo esvaziamento de
seu plenário, acanhado pelo triunfo dos monocráticos, encontra-se
subordinado ao Ministério Público Federal, que opera sob a agenda íntima
de Rodrigo Janot e obedece a um calendário privado sobre o qual as
luzes se apagarão em setembro, quando esse guerreiro do povo brasileiro
terá de entregar o cargo a Raquel Dodge. Há pressa, portanto.
A deturpação do
instituto da delação premiada certamente comporá o legado de Janot e é
explicativa da desordem medida por meio da qual se promovem
justiçamentos para fins eleitorais no Brasil. Em vez de ponto de partida
para investigações aprofundadas, preferencialmente sigilosas, que
resultassem em provas consistentes, destinadas a substanciar as
denúncias, a delação premiada transformou-se em perigosa alternativa à
apuração e se plantou como linha de chegada, fim em si, fonte não de
subsídios para o trabalho do juiz, mas, antes, de vazamentos —
vazamentos diários, administrados a conta-gotas — para influir na vida
pública, robustecer projetos pessoais, costurar enredos ficcionais,
dirigir narrativas e assassinar reputações escolhidas a dedo.
Peço ao leitor que se
lembre da inquestionável manchete da semana passada: “Michel Temer é o
primeiro presidente denunciado da história do Brasil.” Prefiro, porém,
versão alternativa: “Rodrigo Janot é o primeiro procurador-geral da
República a denunciar um presidente do Brasil.” Ele, Janot, também a
prefere. O motivo é óbvio: ilumina o desejado protagonismo político
daquele que hoje é — homologado por Cármen Lúcia e Edson Fachin — o
homem mais poderoso do país.
Quem tiver lido a
peça acusatória contra Temer que a Procuradoria-Geral da República
entregou ao Supremo entenderá o que escreverei agora: Janot é o maior
inimigo da Lava-Jato. De fragilidade juridicamente vergonhosa, mas com
peso político tremendo (multiplicado pelo fatiamento calculado para
sangrar), sua denúncia de torcedor consiste num conjunto de sugestões
desamarradas, que outra coisa não faz que realçar a falta de provas — o
próprio mapa da mina para a atuação dos advogados de defesa, sobretudo
os que se dedicarem a identificar brechas por onde desqualificar o
recurso à delação premiada, o que significará desqualificar a própria
operação.
Com esse apetite
investigatório preguiçoso, mas com paixão seletiva para acusar, é o caso
de se pensar — ou já nos teremos esquecido do que relataram Emílio e
Marcelo? — sobre a qualidade das denúncias que a Procuradoria-Geral da
República apresentará ao fim dos inquéritos abertos a partir das
delações da Odebrecht.
Maior beneficiário da
criminalização da atividade política, senhor da mistificação segundo a
qual todos os políticos criminosos são criminosos igualmente, soberano
de um enredo que paralisou Michel Temer e ceifou Aécio Neves, Lula — o
único que tem um projeto de poder — compreendeu tudo. Assim, jacobino
desde o berço pelego que é, já se sente à vontade para botar na bandeja a
cabeça daquele cuja confiança do PT nunca foi traída: “Se o
procurador-geral da República tem denúncia contra o presidente, tem que
provar. (...) Se ele [o presidente] for culpado, tem que ser julgado.
Mas se o procurador-geral da República não estiver falando a verdade,
tem que passar por punição."
Sim, acelerou-se —
com boas chances de sucesso — a tessitura do acordão por meio do qual o
establishment político tentará se salvar. Nele, graças à inépcia técnica
de Janot, um Temer anulado concluirá o mandato, e sem ter avançado nas
reformas urgentes. Nele, graças à seletividade apaixonada de Janot, um
Lula agradecido chegará ressuscitado a 2018 — para disputar a
Presidência. No meio do caminho, uma falsa reforma política imporá o
financiamento público de campanha eleitoral — sonho maior do petismo.
É tudo política — e é tudo agora.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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