Para o cientista
político Bolívar Lamounier, "esse Congresso" e "esses partidos" tornam
necessárias a alavanca do parlamentarismo. Artigo publicado no Estadão,
observando que o sistema presidencialista é o grande problema:
O debate sobre a
reforma política arrasta-se desde a Constituinte (1987-1988) e do
plebiscito de 1993 sobre o sistema de governo, com resultados práticos
assaz limitados. Todo ano, aí por volta de abril, o Congresso Nacional
ressuscita a questão, para gáudio do jornalismo político e dos cultores
acadêmicos da matéria.
Esquematicamente,
creio poder afirmar que esse ciclo anual se repete com uma notável falta
de clareza quanto ao que precisa ser reformado e aos objetivos mais
amplos, direi mesmo estratégicos, de uma eventual reforma. Ao longo do
tempo, essas duas carências foram agravadas por um retrocesso na
discussão do modus faciendi – ao “como” da reforma. Em nome do realismo,
convencionou-se que a reforma haveria de ser “fatiada”, minimalista,
conceito válido enquanto referência às dificuldades de aprovação no
Congresso, mas que obviamente prejudica a reflexão de substância quanto
ao “quê” e ao “para quê” reformar. Sem esquecer que mesmo as finas
fatias que começaram a ser cogitadas desde a segunda metade dos anos
1990 não percorreram com a suavidade esperada o trato digestivo dos
senhores senadores e deputados.
Neste ano da graça de
2017, a discussão retorna envolta em espessas nuvens escuras. Seu
objeto já não é a uma conjuntura de instabilidade institucional
considerada em abstrato, mas uma instabilidade real batendo às nossas
portas. Tampouco se trata de uma situação de ineficácia governamental
crônica – de “ingovernabilidade”, no jargão dos cientistas políticos –,
considerada em tese, mas dos graves danos infligidos ao País pelo
governo da senhora Dilma Rousseff, da inacreditável perda de tempo
exigida pelo impeachment e dos riscos que se perpetuam em razão da
debilidade do governo Temer. Quase três anos de recessão e o assustador
aumento do número de desempregados parece ainda insuficiente para os
dirigentes políticos e os quadros formadores da opinião nacional
encararem com seriedade a questão da reforma.
Reformar o quê?
Depois da tragicomédia do impeachment de Dilma Rousseff e do mero fato
de se haver cogitado da antecipação das eleições de 2018, parece-me fora
de dúvida que o cerne da questão é o sistema presidencialista de
governo. O traço essencial desse sistema é, como sabemos, a rigidez. Do
ponto de vista institucional, o Legislativo e o Executivo, eleitos em
separado, com base em princípios distintos, nada devem um ao outro.
Salvo o amargo remédio do impeachment, que inevitavelmente envolve o
processo político num cipoal jurídico apenas acessível aos
especialistas, um Poder não tem como influir sobre o outro. Inexiste
base constitucional para tanto. Assim, seja qual for o tamanho do
desastre causado por qualquer dos dois, ou por ambos, eventuais crises
só podem ser superadas pela passagem do tempo. Não por ações e
negociações políticas, mas pelo estrito formalismo do calendário
nacional. O resto é golpe.
Essa, exatamente, é a
situação em que o Brasil se encontra e que, a rigor, teve início já nas
primeiras semanas do segundo mandato da senhora Rousseff. No sistema
parlamentarista, o chefe de governo (primeiro-ministro) que não disponha
de apoio congressual para governar pode ser afastado a qualquer tempo,
tenha ou não cometido crime de responsabilidade. E a recíproca é
verdadeira. Uma legislatura que se recuse a colaborar com o Executivo,
aprovando em tempo razoável medidas de alta relevância para a sociedade,
pode ser dissolvida, com a convocação de eleições parlamentares
antecipadas. O Executivo dispõe, portanto, de uma alavanca poderosa para
resolver impasses, evitando que os congressistas transformem diferenças
razoáveis de avaliação num jogo estéril, num desperdício de tempo que o
país não pode tolerar.
Deixei
propositalmente de lado o problema do chamado “presidencialismo de
coalizão”. Num quadro como o nosso, de proliferação partidária
desordenada, é praticamente nula a chance de o Executivo formar uma base
de apoio com duas ou três agremiações; se o maior partido dispõe de
apenas cerca de 20% das cadeiras legislativas, o presidencialismo será
inevitavelmente “de coalizão”. Os absurdos que tal condição implica aí
estão, à vista de todos. Idealmente, portanto, a eventual adoção do
parlamentarismo deve associar-se a uma freada enérgica na proliferação.
Mas não concordo com a afirmação de que o conserto da estrutura
partidária seja uma precondição para a mudança do sistema de governo. De
fato, é comum ouvir que o parlamentarismo não pode ser implantado “com
esse Congresso”, ou “com essa estrutura partidária fragmentada”. Ora,
nas condições brasileiras, o que torna as alavancas parlamentaristas
necessárias e urgentes é justamente o fato de termos “esse Congresso” e
“esses partidos”, travas que o sistema presidencialista não tem como
romper.
Reformar para quê?
Aventuro-me a afirmar que a instabilidade do regime constitucional,
risco intensamente considerado pelos constituintes de 1987-1988, já não é
uma ameaça grave no Brasil. Muito mais séria é a ineficácia ou baixa
eficiência do processo decisório (o risco da “ingovernabilidade”) – como
o evidencia o sofrido andamento das reformas trabalhista e
previdenciária no Congresso. Nunca é demais lembrar que o Brasil é um
dos países aprisionados no que os economistas chamam de “armadilha da
renda média”. Refiro-me aqui a países que chegaram até com certa
facilidade ao patamar de 10 mil ou 12 mil dólares de renda anual por
habitante, mas não conseguem pular para os 20 ou 25 mil, nível ainda
modesto, característico dos países mais pobres da Europa, como Grécia e
Portugal.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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