Em artigo publicado no Estadão ("O seu destino por um fio"), Fernão Lara Mesquisa afirma que há dois Brasis se enfrentando: "o
da “privilegiatura”, reduzindo o da meritocracia à escravidão, ou o da
meritocracia, reduzindo o da “privilegiatura” à igualdade. Os dois
juntos não cabem mais na conta":
E cá estamos, o País a
quem a corrupção e um jornalismo “corporate” sem osso cassaram a voz
própria, reduzidos a assistir pela TV ao nosso destino ser traçado.
Conforme mil vezes
prometido, do jeitinho que foi prescrito e está escrito, a cobra morde o
rabo com a fuga dada aos 2ésleys. A ressaca da Queda do Muro, o caminho
da ressurreição da esquerda latino-americana pela apropriação dos
bancos públicos e fundos de pensão apontados a Lula e José Dirceu por
Luiz Gushiken, a operacionalização do esquema com a gazua dos “campeões
nacionais” da roubalheira, a desmoralização da política solapada por
dinheiro bastante para comprar a metade do mundo, a infiltração do
Judiciário ao longo de 13 anos de nomeações, tudo faz parte de um
roteiro cuja propriedade intelectual tem sido reconhecida e reverenciada
onde quer que sobrevivam ditaduras.
A longa marcha começa
nos meados dos 90 pelo controle dos sindicatos de bancários. A
“PT-Pol”, de “polícia”, como a chamavam as redações da época, passa a
bisbilhotar as movimentações bancárias do País inteiro e a vazar
seletivamente para os jornais os maus passos dos adversários. Um cultura
estava nascendo. É pouco a pouco que o jornalismo investigativo se vai
entregando à guerra de dossiês.
A vida informatizada
traz o esquema para a era do “grampo”. O “mensalão” é o último episódio
em que se diferenciam nuances. Flagrado o lulismo em delito de
“corrupção sistemática dos fundamentos da República com vista à
imposição de um projeto hegemônico”, restava deslocar o foco do todo
para as partes e ir daí para a indiferenciação.
É esse o ponto de não
retorno: caixa 1, caixa 2, propina, tudo vai, insidiosamente, sendo
feito “sinônimo” uma coisa da outra. E aí está a política presa inteira
na arapuca, igualada ao pior de si mesma.
Daí para a frente é
poder contra poder. E velocidade passa a ser o que decide. Com todos os
eleitos (com passagem obrigatória, portanto, por algum “campeão
nacional” de financiamento de campanhas) devidamente filmados e gravados
basta, doravante, escolher o que publicar. Não é preciso provar mais
nada. Não importa o que se disse e mesmo quem o disse em cada gravação. O
contágio é por contato. Basta formar os pares. Diante dos avatares
murmurando frases entre reticências sobre o cenário de fundo de rios de
dinheiro correndo pelo chão, da cena mil vezes repetida do sujeito
“ligado a” recebendo furtivamente uma mala, onde enfiar raciocínios com
mais de três palavras sobre quem as tem recheado há tanto tempo com
tanto dinheiro, e para quê?
Mas o País insiste em
se fazer essa pergunta. O Brasil inteiro sabe que tem alguma coisa no
ar além das notas voando das vinhetas da televisão. Só que continua
órfão de pai e mãe. Não tem quem fale por ele, mas resiste como pode ao
salto no escuro para o qual o empurram com tanta pressa. Nega-se às ruas
para as quais o conclamam diariamente em prosa e verso. É nada menos
que atroador o seu silêncio diante das circunstâncias.
Já o Brasil com voz –
que não conduz, deixa-se conduzir – vai no arrasto de uma espiral de
ódio. Quem não está na conspiração ou está bebendo vingança, ou está
agarrado pelo silogismo moral em que a conspiração quer todo aquele que
não “é”. Ninguém interroga os fatos; tudo é sempre empurrado para o
“se”, o “quando”, ou o “de que jeito” se conseguirá torná-los consumados
como se fosse certo que o sol da democracia renascerá amanhã.
Não é. Há dois Brasis
caminhando para um confronto e só um deles sobreviverá. Ou o da
“privilegiatura”, reduzindo o da meritocracia à escravidão, ou o da
meritocracia, reduzindo o da “privilegiatura” à igualdade. Os dois
juntos não cabem mais na conta. Há também dois Judiciários funcionando
em paralelo. Um que, tropeçando pelo cipoal legislativo e processual,
investiga, colhe provas, processa e condena a partir de Curitiba numa
velocidade que comporta credibilidade e tem no horizonte o respeito aos
limites do contrato social. E o outro. Há, por fim, dois Legislativos e
dois Executivos. Em ambos há quem, tendo jogado o jogo da política como
ele é, olha agora inequivocamente para o Brasil e procura saídas. E há
os que, na sua fé cega no lado escuro do bicho homem, só olham para
Brasília ou para Miami. O problema é que todos têm pelo menos um pé
enfiado na “privilegiatura” e nenhum faz força para desatolá-lo.
Vai ser preciso
repensar isso. E rápido. Morta a última esperança, o País, na melhor
hipótese, está paralisado de novo até outubro de 2018. Nem vale a pena
especular sobre o depois. A carga de novas misérias já contratadas nesta
beira do caos de que partimos é muito maior do que a que podemos
suportar sem nos despedaçarmos. E o Legislativo já tem tido de engolir
cala-bocas demais para acreditar que poderá sobreviver a isso com
embarques e desembarques espertos ou pedindo ao povo que aplauda o seu
apelo por mais sacrifícios.
Já o juiz
venezuelizante é o milico de 64 modelo 2017, mas sem a reserva moral.
Cava a entrada no jogo by-passando a regra porque é imoral. E este é
vitalício. Não tem compromisso nenhum com o instituto do voto nem com a
ideia de representação.
É essa a escolha que há. E metade dela já foi feita sem que fôssemos consultados...
Este é, porém, um
daqueles raros momentos da História em que a necessidade faz tudo
convergir para um ponto com tanta força que até os milagres se tornam
possíveis. O único programa econômico que pode fazer o Brasil reviver é
também o único programa político que pode redimir a política. Os dois
consistem no enfrentamento da “privilegiatura”, o ralo de todos os ralos
da economia e o ponto de origem e de destino de toda essa corrupção.
Reforma da
previdência “deles”, igualdade, referendo, “recall”. Se propuser à Nação
um compromisso sério para mudar definitivamente o sentido dos vetores
essenciais de força que atuam sobre o “sistema”, o Legislativo irá de
vilão a herói em um átimo e faltarão ruas para as multidões dispostas a
entrar nessa briga com ele, com uma força muito maior que a necessária
para decidir a parada.
Se não...
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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